A NOITE

“A noite tem deixado seus rancores gravados

a faca e canivete, a lápis e gilete

por dentro da pessoas

por dentro dos toaletes e mais

por dentro demais..."

A noite se mostra como a porta da esperança. É a chance que se tem de encontrar e ser encontrado. As pessoas se produzem, tornam-se bonitas,sensuais, e vão à caça. Todos querem ver e serem vistos. Admirar e serem admirados. O mesmo acontece durante o dia, porém a noite se mostra mais propícia. Segundo o dito popular “à noite todos os gatos são pardos”; então a cor parda é a mais bela possível. Eu diria que “todos os gatos são belos”.

O mundo gira em torno da noite. Os bares, as boates, as praças, as calçadas, mesmo a varanda de nosso apartamento. “Tudo é divino / tudo é maravilhoso”. Tudo é sugestivo, sensual. Nossos olhos vêem o que queremos, como queremos. Nós somos o que sonhamos. É o momento por que vivemos, por que nos produzimos, por que esperamos. As luzes, mortiças ou feéricas, são estimulantes. A cada olhar, a cada passo, a cada esquina, um desafio, uma surpresa, uma oportunidade (se bem que também um perigo: assim que me vi capaz de sair de casa, após uma enfermidade, custou-me ter coragem para fazê-lo à noite, mesmo que para ir ao meu curso de informática). E o cinema, durante o dia, não tem a menor graça. “...eu queria dizer / que tudo é permitido / até beijar você no escuro do cinema / quando ninguém me vê...”

E o amanhã? Ah, o amanhã... “Amanhã será um novo dia...” Vivamos o hoje, o agora, a noite. Quando o amanhã vier, com sua luz, o trabalho, o dia-a-dia tão comum, vivamo-lo, mas à espera da noite que o seguirá. Para a crueldade de cada manhã, a certeza de uma noite. O amanhã, por mais que o poeta o cante, traz sempre a realidade crua, nem sempre agradável. Vai-se embora a sensualidade, o sonho, a poesia. Convivemos à luz do sol com as rugas, a chatice, as cores reais, a monotonia e, via de regra, a decepção. Aquilo que, à noite, pareceu-nos belo, agora mostra sua face real. E isto quebra toda a magia do sonho, da fantasia criada por nós. As palavras, outrora doces, assumem outra conotação, outro tom: o da ironia, quiçá o da falsidade. E se esta impiedosa realidade se impuser sobre a criatividade noturna, conviveremos com a frustração. Credo! “Ninguém merece”.

Por outro lado, a noite pode ser apenas um momento, já que, efetivamente, dura menos que o dia. E podemos ter uma realidade aceitável, até mesmo agradável. Assim, a noite assume o papel de ameaça, a sua face escura, enquanto que o dia se apresenta como a luz, a esperança, a energia. Ouçamos Thiago de Mello, quando magistralmente nos diz que “Faz escuro mas eu canto / porque a manhã vai chegar”. Mas perdoe-me, Thiago, um dos meus poetas prediletos; prefiro ater-me à outra faceta da noite, esquecendo a escuridão que nos impõem, política e socialmente. Aliás, a noite também serve para isto: ocultar o que não queremos ver. Sei que serei criticado, mas, se há o compromisso de lutar pela luz, pela sabedoria, pelo respeito, há também o prazer, o bem-estar, a satisfação, a suposta realização. Se estes vêm através das pálpebras fechadas, fechemo-las e abramo-las apenas no momento necessário à nossa satisfação. Há que se dar tempo ao tempo. Há tempo para lutar e tempo para amar.

Sei que a noite traz marcas indeléveis, mas o dia também. Não sou um Batman, mas me defino como um ser noturno. Apesar dos pesares, ainda que também aprecie a beleza do sol.

06/07/05

Pabinha
Enviado por Pabinha em 31/08/2006
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