Devir mestre no dever de ser
É tarde. Meu coração está cinza como cinza é o céu em dias nublados. Bate o relógio, bate meu coração, bate o relógio em tic-tac, bate meu coração descompassado, o relógio e meu coração, ambos, em cada compasso e o apito do alarme soa dentro de mim. O alarme e a hora marcada. Chegou o momento esperado. Paulatinamente me levanto, pego a bolsa, fecho o riso, vou ao bebedouro, pego um copo, molho a garganta seca, agitada e sinto quando a porta da sala se abre, se fecha e percebo a hora de caminhar sem sentir os passos, somente as pulsação acelerada, os pés que talvez nem cheguem ao chão. Vou me encontrar com a realidade que me esperava.
No meio do caminho me deparo com o banheiro, resolvo entrar. Frio banheiro de mármore. Consulto o relógio como se consulta um oráculo, resolvo, entro, ainda há tempo. Vejo meu rosto no espelho, vejo o reflexo de um rosto que não é o meu. O desconhecido no espelho que não se representa. Vejo a leitura do momento que está em mim e me represento pelo medo. A vontade de sair dali e nunca mais voltar. Por onde será que me perdi? Posso voltar atrás?
Lavo o rosto, enxugo-o com toalha de papel, bato a porta da insegurança e caminho lentamente para o meu destino. O corredor é longo e tantas vozes se misturam com a polifonia latente no interior da morada do meu ser. Vozes interiores, diabinhos que infernizam as minhas verdades e enquanto maquino em mim, com meus botões, várias portas que se abrem e se fecham ao mesmo tempo. O tempo que passa, o tempo que vem e o vento que sopra meu rosto em calmaria. Suor por trás da orelha. Incomoda-me e enquanto caminho, passo a vida a limpo.
De frente da porta marcada com o número onze me encontro e vejo-me chegar a minha sala de aula do sexto ano. Algazarra de meninos e meninas eufóricos, bolinhas de papel, o quadro de giz decorado com nossos nomes e sem fome alguns já beliscavam seus lanches, mostravam mochilas novas, cadernos com capas de super-heróis, além das caretas, dedos no nariz, língua de fora e aparte isso, eu, novato, tímido, no meu canto calado a observar as cenas e tentar enxergar o que estava do outro lado da janela. Pelos grandes olhos, enormes orelhas e rosto redondo, era motivo de piadinha, brincadeiras de mau gosto por veteranos. Diabólicas crianças que mais tarde passariam a ser as melhores lembranças de minha vida. Chega à professora toda em róseo e toda zoada é transformada em gritos de viva. Aquela voz angelical transformava o som infernal em cantiga de anjos e todos os monstrinhos ali, habitando os mundos invisíveis de cada um iam deixando o recinto e sinto, agora, como marcou a minha vida aquela que coreografava as aulas pela paciência de entender aqueles que ali estavam cheios de problemáticas diversas. Era ela um uni verso celestial e os dias que não havia aula dela era um tormento para nós. A professorazinha de minha infância. A fada rósea de voz doce.
Vou abrindo devagarzinho a porta e logo uma sinfonia de paz é tocada dentro de mim. O silêncio do espaço me fazia perceber que eu era a estrela do espetáculo e seres fantásticos de longe me aplaudiam e faziam figa e me pediam que acreditasse. Não eram crianças como as da sala viva na memória de mim, eram seres ansiosos e comportados, cada um no seu espaço, sem reboliço externo. Centenas de olhos como centelhas de luz a mostrar-me o foco, o centro, o rumo da atenção. E eu era ou estava naquele momento? Não sei ao certo, só lembro da ânsia que se formava em minhas entranhas.
Quem sou na verdade neste espaço? Sou o que sou ou o que desejo ser no momento seguinte? Personagem? Ser fantástico? Astro? Pingo? Eu ou o outro, o outro ou eu? Sou o mesmo ser de um minuto atrás ou algo materializado no momento presente, pela força da mente? Sou a soma das minhas escolhas e no devaneio do pensamento uma voz exterior:
_ Seu nome?_ Aquilo me fez voltar a mim e perceber que minhas mãos suavam muito. Os passos passaram a pesar e eu sentia que os sapatos apertavam todos os dedos. O desconserto, a palpitação. De repente a necessidade de beber água, de ir ao banheiro e não sabia se sentava ou se dizia boa noite, sou eu quem estou aqui, me chamo por este nome e vou ficar e vou ensinar e vou porque vim aqui para isto.
_ pode dizer, por favor? _ Insistentemente perguntava a voz sedenta por resposta, mas a voz não saia, engasgava pela tensão. Olhei na direção da voz e encontrei os olhos dono da voz que me abordava na esperança de dizer, me chamo... E assim travar um diálogo, agir, ser fato, acontecer como ser presente, ali...
Às vezes as reações inesperadas e os surtos de memória. Tenho um nome? Sei quem sou na verdade ou esse nome me empresta aquilo que não sou na verdade? Uma falsa identidade, um não-ser se apodera e no meu devir entro em devaneio e rezo aos deuses de minha existência: Heráclito, Aristóteles, Hegel e eu calado. A gente se perde pela velocidade do pensamento e os acordes sugerem movimentos lentos: ande pela sala, pegue o lápis, escreva algo, diga, se mostre, sente, saúde, saia de cena ou estrei.
A inércia acalma a avalanche instalada e nenhuma resposta é formulada. Tenho um nome, sim, tenho um nome, mas isso me faz ser meu? E quem se possui afinal? Eu possuo o nome? O nome me possui? Eu identifico o nome ou o nome me identifica? E uma vontade de atravessar o rio da saudade de minha existência, o rio que passara e eu ficamos a contar os peixes.
Faço figa, não, não faço nada. A inércia toma conta de mim e alguém provoca em mim uma reação. Silêncio, a necessidade me obriga a isso. É uma escolha? Pouco provável. Abro o riso latente no desconhecido, me afago, acredito e digo, digo quem sou e quem vivo... Vou ao fim da sala, pisco o olho para o lado, gargalho e quem se sentia fora já estava dentro, rendido e o barco que parecia afundar estava simplesmente às margens ancorado, pronto para içar novas velas e seguir viagem. Capitão daquela embarcação, rasguei o verbo, escancarei e me fiz pescador, como tantas vezes fui na minha vida. Pesquei sonhos, ilusões, vontades, necessidades e desejos.
Do momento da descontração, alguém percebeu que os botões da minha camisa estavam abotoados fora da ordem e uma ponta sobrando tornava a cena patética. Sorrimos e do riso as recordações de uma vida inteira.
Voltei a realidade e expus a proposta da disciplina, questionei, instiguei e já dividindo a turma em pequenos grupos propus a primeira atividade.Iríamos fazer um raio x de cada um e procurar descobrir as identidades, exercitar a dificuldade que temos de falar de nós e perceber a facilidade de apontar os outros. Desligar o nosso “desconfiômetro” e sair ao encontro de nós.
Naquele dia um novo dia, uma nova ação, um novo movimento.
O fim da aula, a saída de cada um, o gosto de dever cumprido. Juntei meu material satisfeito, sem pressa, embora eufórico, todo largado em sorriso. Observei a sala vazia, me dirigi ao interruptor e não quis desligá-lo. A sala de aula merecia naquele instante ficar clara, altiva.
Abri a porta e diferente da vinda, não tive mais medo do que me vinha pela frente. Saí descontraidamente a cantarolar as proezas de uma aula feliz.
O problema? O problema foi ter passado no banheiro da vinda, lembra? Me ver novamente no mesmo espelho que tinha visto refletida a face antes do encontro com a sala. Ter a sensação que aquele não era mais o mesmo espelho que a tão pouco tempo porque eu não conseguia ver o mesmo rosto de minutos atrás. As feições, o brilho do olhar, a cor das maças , enfim, tive a confirmação do meu devir, era um outro ser. Sorri suavemente para mim e não quis mais lavar o rosto. Fiquei ali parado por alguns instantes e saí batendo a porta.
Entrei no carro e satisfeito busquei me encontrar cada vez mais na velocidade da máquina, na conquista do espaço e na gratidão que crescia em mim, inspirada, na canção que tocava no rádio: “... é apenas o meu jeito de dizer...”.