Amélia
AMÉLIA
(do livro “... aos 40!” – editado em 2007 - de Maria da Graça Zanini, Sílvia Bier, Sônia Bier e Rosalva Rocha)
Dia chuvoso. Amélia acabou de chegar em casa do batizado de Vicente, filho de uma de suas melhores amigas. Lá encontrou amigos, curtiu o menino que estava lindo, aproveitou e falou muito sobre sua sobrinha que nasceu três meses antes de Vicente, entregou um presentinho extremamente providencial (um mordedor colorido), pois sabia que era aquela a fase do início do nascimento dos dentinhos. Falava, falava ... Como se já tivesse tido a experiência de ser mãe. E não foi.
Falta de oportunidade? Não. Foi casada e a maternidade era uma de suas grandes aspirações. Não gostava de crianças? Sempre gostou muito, a ponto de se emocionar seguidamente com crianças próximas e ser chamada de “tia” por várias delas. Afinidade nunca faltou. Talvez tenha faltado coragem. Sim, coragem para enfrentar o fato, o mercado de trabalho, os relacionamentos instáveis e, por fim, a realidade de um mundo que a chocava muito.
E a promessa de adotar uma criança, caso não fosse possível tê-la até os 30 anos de idade? Essa promessa era conhecida por todos. Adoção, ato de amor.
Passaram-se mais de 15 anos e Amélia continuava ali, muitas vezes se sentindo sozinha, no mesmo estilo de sua prima Ana Alice, com a qual sempre se identificou.
O tempo passou tão rápido ... Chegaram sobrinhos, afilhados, filhos de amigos ... Tudo uma festa, mas nenhum deles era “seu”.
Quando casada, chegou a ganhar sapatinhos para inicial o enxoval do bebê, mas o casamento já estava acabando e, segundo ela, o bom senso prevaleceu. Não poderia ser egoísta a ponto de colocar um ser no mundo em circunstância tão adversa.
A chuva continuava e o anoitecer se avizinhava. Amélia resolveu fazer um chá e sentar-se para continuar com o seu trabalho manual (sempre teve um trabalho manual em andamento, assim como um livro para leitura – manias dela). Mas a idéia de continuidade da sua vida não lhe saía da cabeça ... Por quê? Por quê? Seria alguma coisa do destino? Era tão forte para algumas coisas e não tivera coragem para ter um filho. Sabia que sua mãe tinha razão quando dizia: “Não existe o momento certo para se ter filhos”. E ela estava ali, sozinha, seu namorado já tinha saído e, certamente, com ele nada vingaria, além da sua idade avançada. Ela já tinha dois e certa vez deixou bem claro que não gostaria de ter mais um filho.
De repente o telefone tocou: era Rose, sua afilhada, toda carinhosa, para dizer que adorou o presente de aniversário. Finalizou a chamada com “eu te adoro dinda”. Amélia emocionou-se, pois sabia da ligação que foi construída em 22 anos com Rose, uma ligação de orgulho mútuo e de muita amizade. Além dela, tinha também Laura, uma prima querida que, por ser sua afilhada, os laços se estreitaram cada vez mais.
Entre um gole e outro de chá, Amélia começou a pensar na dura realidade de uma grande maioria de pais, em projetar em suas preciosidades tudo aquilo que não foram ou não conseguiram (aconteceu com ela também).
Começou a pensar que a complexidade para a criação é grande, e o resultado nem sempre o esperado. Não que ela pensasse em um ser perfeito em todas as situações ... Contudo, pensando mais profundamente, não se sentiu frustrada. Agora tinha mais uma sobrinha para curtir, para acompanhar o crescimento e dar muitos “pitacos”.
O que havia ficado mais simples naquele momento, talvez, será que ela gostaria de ter um filho por amor, mas também para companhia e para cuidá-la na velhice, fato extremamente comum, mas muito pouco difundido, uma vez que, se bem analisado, é um sinal de egoísmo. Que garantia teria em relação aos seus desejos? Lembrou de Gibran: “vossos filhos não são vossos filhos ...” E pensou mais: “seus sobrinhos não são seus sobrinhos ...”.
Incrível, como os meninos se afastaram, depois de tanta preocupação e dedicação. Cresceram e foram para o “seu” mundo.
Ao levar a xícara de chá vazia para a cozinha passou por um espelho no corredor. Amélia adorava espelhos ... Talvez porque sempre gostou de ver bem o seu rosto. Parou, olhou-se por inteiro e sentiu-se completa.
A sombra de “ter que ser mãe” se esvaiu.
E que ninguém, nunca mais, chegasse pra ela e dissesse: “Não sabes disso porque não és mãe”. Ledo engano! Ela tinha amor transbordando e uma consciência muito grande sobre a sua própria vida. Era mãe de si mesma, passou a ser mãe de sua mãe e tudo passou a ficar mais claro.
Adormeceu tranqüila.