MEMÓRIAS DE UM FUSQUINHA
O Fusquinha na porta. Ele doido pra mostrar. Verinha vem correndo. Arrasta a filha pela mão “Vem cá, Amanda, seu pai trouxe o Fusca, tá lá fora!”. O carrinho vira festa. Vizinhança chegando. Todo mundo dando palpite. As mulheres beliscam o estofado. Os homens especulam sobre motor, potência, sei lá mais o quê. Homem e carro? Melhor sair de perto! Verdadeiros sábios automobilísticos...
O carrinho analisado. Por fora, por dentro, por cima e por baixo. Pronto? Tudo nos conformes. Curiosidades satisfeitas. O povo dispersa. Ele vai tomar banho. Quer dar a primeira volta no Fusca. Devidamente acompanhado de Verinha, Amanda e Katiúscia, a amiga inseparável da filha de seis anos. Aonde uma vai a outra vai atrás. Então, nada mais justo que estrear o Fusca com a família, ué! Amigo é pras coisas ruins... E as boas como, por exemplo, andar de Fusca num sábado de bastante calor...
Aonde vamos? Verinha quer ir a casa da mãe. Mostrar o Fusca pros irmãos. Quem sabe fazer uma invejinha na antiga vizinha. Aquela arrogante que vive tirando onda com seu Passat 99! Amanda reclama “Ah, não! Hoje é sorvete, né, pai?”. Katiúscia, dá seu aparte “Nada disso, Tio Vanilson, a gente vai é comer cachorro quente!”. Hum! Tio Vanilson troca um olhar cúmplice com Verinha. “Essa amiga da Amanda tá ficando abusadinha, hein? Já tá até mandando, gente!” Criança, né? Deixa pra lá!
Nem vovó, nem sorvete, nem cachorro quente! “Sem lenço e sem documento”, por enquanto! De Fusca não tem tempo marcado. Não é igual a ônibus. Perdeu? Já era! Quem tem um Fusca tem o mundo. Tá aqui, tá longe! Estalou o dedo, chegou! Então vamos saracotear por aí. Igualzinho a todo mundo que tem carro. Ficar zanzando sem destino. Pra lá, pra cá. Dando voltinhas pelo centro! “Ontem saímos pra uma volta de fusca no centro e...”. Soa bem pra caramba, isso! Chique mesmo...
Todo mundo no Fusca! A carteira, tio Vanilson já tirou faz um ano. Só esperando o “possante” chegar. Agora que chegou, rodas pra que te quero. Sem essa de ficar tremendo quando vê blitz. Cidadão que cumpre leis. Tranquilo. Daqueles que podem até passar de Fusca e dar um tchauzinho pra polícia. “Quem não deve não teme!”. Tio Vanilson não deve nada a ninguém! E nem tem medo de guarda de trânsito! Que bom isso, né?
Avenida principal. Hora pesada essa! Muito trânsito. Verinha, na frente. A própria primeira-dama-do-fusquinha-branco, se é que existe esse posto. As meninas vão atrás. Sem cinto de segurança. Detalhe: Tio Vanilson jamais permitiria se isso fosse nos dias de hoje. Mas este inesquecível passeio não é nos dias de hoje, bem explicado pra não haver dúvidas... O Fusca tem som! Meio fuleiro, mas dá pro gasto. Tio Vanilson tamborila os dedos no volante, acompanha o ritmo de um sambinha. Olho no retrovisor. Tudo sob controle. Ele atento, sempre! Súbito, a escuridão e um grito no ouvido “Adivinha quem é?!”. Meu Deus! A noite chegou? O mundo acabou? Acabou nada! É só a Katiúscia tampando os olhos do motorista!
Jesus me acode! Tio Vanilson perde o senso de tudo! O carrinho dança no asfalto. Vai pra lá e pra cá. Nossa! Só Deus pra dar conta! Sobe na calçada. Bate numa árvore e se entorta todo. Por um beiço de pulga não arranca um muro. Alguém morto ou ferido? Por sorte ninguém. Milagre! Bonito, hein, dona Katiúscia? Criança, né? Deixa pra lá... E o Fusquinha? Bem, esse, na sua estreia de glória, passou a noite fora de casa...