Só no natal é muito pouco
A uns três natais, eu fui convidado por uns amigos a passar o dia numa creche na periferia da cidade, mantida por uma instituição religiosa, em um bairro de pessoas muito carentes. Iríamos fazer um dia de confraternização para as crianças e suas famílias. Tudo já havia sido previamente combinado com os responsáveis, que estariam nos esperando. Estes, por sua vez, divulgaram na véspera o evento na comunidade.
Chegando lá, me vi em uma cidade distante, ou um país distante, ou até mesmo em um planeta distante. A miséria era reinante. O asfalto passava a uns cinco quilômetros, a energia elétrica era artigo de luxo para poucas casas, estas construídas predominantemente de madeira e papelão.
No dia anterior nós juntamos e compramos ingredientes para café da manhã, almoço, lanches e brinquedos. Seriam atendidas pouco mais cem pessoas, entre crianças e adultos. Eram pessoas simples, crianças de pés em chinelinhos surrados, todos atentos e ansiosos, aguardando o desenrolar do dia. Iriam ter refeições decentes naquele dia, as crianças iriam ganhar brinquedos.
A creche não conseguia atender a demanda do bairro, e nesse dia certamente a grande maioria dos moradores seria atendida. Nem que seja com apenas uma refeição de véspera de natal.
No grupo havia palestrantes, psicólogos, professores, administradores, religiosos... E como foi um dia especial, enquanto uns preparava o lanche do café da manhã (pão, presunto e mussarela), outros começavam a preparar o almoço, outros reunia grupos de atividades recreativas e brincadeiras, outros organizava brigada de higiene e asseio, cuidando no imóvel, seus jardins e quintal.
Assim que o lanche ficou pronto, eu fiquei encarregado de distribuir os sanduiches numa grande caixa de papelão, circulando entre as crianças e suas famílias, e cada um pegava o seu. Um amigo ia logo em seguida, com refrigerantes em garrafinhas pequenas e saquinhos de leite. E quem desejasse podiam repetir, havia lanche em abundância.
Passei diante de uma mulher aparentando uns 30 anos, com várias crianças. Ela, de posse de uma sacola plástica de supermercado, perguntou se poderia pegar mais alguns, no que eu concordei. Ela pegou uns cinco a seis sanduiches e acondicionou na sacola, comentando que aqueles seriam a janta daquele dia, pois em casa não havia nada na dispensa.
Confesso que aquela colocação me surpreendeu. Me vi num emaranhado de pensamentos, frustrações, pequenez, e incapacidades. Apesar ter uma vida difícil e com orçamento espremido, felizmente não tenho essas limitações. Não dessa magnitude. E o agravante, é ver a quantidade de crianças na barra da saia daquela mulher, alargando essas limitações.
Pouco depois, uma das pessoas responsáveis pela creche, parece que percebendo minha angústia, me disse que aquela família era uma das mais carentes do bairro. Passavam sim muitas dificuldades e privações, moravam em um casebre de madeira coberta com plástico nas imediações. O marido, pintor de paredes autônomo, até que ganhava razoavelmente bem, mas tudo que ganhava gastava em drogas, era dependente químico.
Aquele dia foi intenso, cheio de experiências inusitadas, recheadas de muitos sorrisos e emoções fortes. Foi como levar uma sacudida. “Você também é responsável”.
Mas uma coisa é certa: Não acredito na eficácia de simplesmente doar víveres e agasalhos. É mais importante a doação de conhecimento, de destrezas, de habilidades para que as comunidades aprendam e tenham condições de laborar e ganhar seu próprio sustento e zelar pelo seu próprio bem-estar. Penso sim, ser esse o caminho. As pessoas precisam ter autonomia para escolher a sua qualidade de vida. Mas precisam ter condições para isso. Precisam saber fazer isso. É utópico, tentar ensinar noções de higiene, por exemplo, a quem não tem sequer a janta na dispensa.
Com o agravante que para muitas pessoas, ganhar um pão a cada dois ou três dias é muito mais cômodo que ter de trabalhar para ganhar seu sustento. Reside aí também, uma grande necessidade de inserção de valores e cidadania. É perverso, se acostumar com o mínimo.
Até hoje não consegui ser ativo o suficiente para fazer alguma coisa prática e útil nesse sentido. Uma vez por ano é muito pouco, diante de tantas necessidades nas comunidades carentes. Sinto que estou em débito comigo mesmo e com muitas pessoas que precisam. Mas falta-me ainda, talvez coragem, desprendimento, iniciativa, atitude, enfim.
Isso me inquieta muito. Sinto que sou capaz de fazer algo útil. Mas falta-me, talvez, um safanão de “acorde, saia dos trilhos que o trem está chegando”.