E os Anos Dourados?


Fernando Sabino.
Acabo de readquirir, na sua décima edição, No Fim Dá Certo, um belo livro de crônicas desse mineiro de Belo Horizonte, extraordinário escritor, falecido aos 81 anos de idade. Foi fazer companhia ao Paulo Mendes Campos, ao Otto Lara Resende e ao Hélio Pellegrino. Juntos, eles marcaram presença em momentos de glória da literatura nacional.
Paulo Mendes Campos morreu no dia 1 de julho de 1991; Otto Lara Resende no dia 28 de dezembro de 1992; Hélio Pellegrino no dia 23 de março de 1988; e Fernando Sabino no dia 11 de outubro de 2004.
Esses quatro contistas, cronistas, poetas, jornalistas mineiros nunca deveriam ter morrido e me perdoem se considerarem uma bobagem o que acabo de dizer. 
Com algum esforço, escreveria um pouco sobre a vida e a obra do Fernando Sabino, autor que todo cronistas está no dever de conhecer. Ele deixou crônicas que o tempo não terá coragem de destruí-las. Mas deixemos que outros, como mais autoridade, o façam.
Lendo No Fim Dá Certo - que o Fernando completa, advertindo que "se não deu, é porque não chegou ao fim" - deparei-me com uma delas, que me fez sentir saudades...
E certamente levará boas recordações aos que viveram um tempo ingênuo e transbordante de felicidade, que se convencionou chamar de "anos dourados".
Pensei em selecionar alguns trechos dessa crônica  e usá-los para dar um especial verniz a estes meus rabiscos. Cheguei, porém, à conclusão de que a crônica Anos Dourados, do Sabino, deveria ser transcrita na íntegra.  Faço-o, agora.
"CHEGO de viagem e encontro o Rio entregue à nostalgia dos anos dourados. Descubro que a fonte é uma sedutora minissérie de televisão com este título, de autoria do Gilberto Braga,e que vai fazendo sucesso entre os saudosistas daquele tempo.
Quais são, precisamente, os anos dourados?
Depois de ver um capítulo, presumo que sejam os que vão de 1954 a 1964, por aí. Do advento do Juscelino ao golpe militar, hoje, graças a Deus, também de saudosa memória. 
          JK, pé-de-valsa, peixe-vivo, bailando até conquistar a presidência. Juarez, derrotado, dando murro na mesa. Lacerda vociferando, a Aeronáutica se rebelando, Jacareacanga, e o Juça ali firme, perdoando todo mundo, em nome de Brasília.
Brasília, o eleitorado dos anos dourados.
Pelo rádio, "I Apologize", na voz de Billy Eckstine. 
MANCEHTE concorrendo com o O CRUZEIRO.
Numa, as crônicas de Rubem Braga, do Paulo Mendes Campos, Henrique Pongetti e deste seu criado. Desenhos de Borjalo, fotos de Gervásio Batista, Hélio Santos, Jáder Neves.
Na outra, o Pif-Paf de Vão Gôgo, David Nasser & Jean Manzon, Amigo da Onça. Fotos de Idalécio Vanderlei, Flávio Damm, José Medeiros. E tome reportagens sobre os xavantes.
As duas revistas, aliás, são o mais completo documentário dos anos dourados no Rio. (Em São Paulo, nem se fala! Fica para outra.) Junte-se uma coleção do Diário Carioca de então, tendo como maestro o inenarrável Pompeu de Souza, sob cuja batuta nos juntávamos na maior zorra ( o espantoso é que o jornal saísse no dia seguinte): Prudente de Moraes, neto, Carlos Castelo Branco, Otto Lara Resende, Evandro Carlos de Andrade, Paulo Mendes Campos, Maneco Muller, Armando Nogueira, Octávio Tyrso, Jânio de Freitas, Lúcio Rangel, Sérgio Ponto, Tinhorão, Santa Rosa, e por aí vai.  Com direito  a Aloízio Salles.
"Vingança", de Lupicínio: você há de rolar como as pedras que rolam na estrada.
Noite de Gala às segundas-feiras na TV Rio, sob o patrocínio de O Rei da Voz. No teatro de bolso da Praça General Osório , Silveira Sampaio e sua Trilogia do Herói Grotesco.
Nelson Rodrigues provocando polêmicas, entra ano, sai ano: "A Falecida", "Perdoa-me por me Traíres", "Os 7 Gatinhos", "Boca de Ouro". Absolutamente  certo! gritava J.Silvestre, o céu era o limite. 
Nas telas, Oscarito e Grande Otelo em "O Homem do Sputinique". 
Na Última Hora, as certinhas de Stanislaw Ponte Preta : Rose Rondeli, Carmem Verônica, Elizabeth Gasper, Irma Alvarez, e por aí vai.
E Vanja Orico - Vanja vai, Vanja vem.
Tomara-que-caia, maiô de duas peças. As pernas de Renata Fronzi no Follies, no segundo andar de Bolívar com Avenida Copacabana. O teatro era tão pequeno que os artistas tinham de entrar pela janela, passando do camarim para o palco pela marquise, do lado de fora. Espetáculo para os que lá da rua não podiam  pagar ingresso.
Golias na sala de aula, bonezinho de lado, desacatando o professor. E Moacir Franco, você aí, me dá um dinheiro aí! Lúcio Alves e Dick Farney cantando "Teresa da Praia", de um jovem compositor chamado Tom Jobim.
Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal.
RESTAURANTE de luxo mesmo era o Bife de Ouro. Mas o sonho dourado era ter um cadilaque rabo-de-peixe. 
Guimarães Rosa, mira e veja, Grande Sertão: Veredas. 
Marta Rocha perdendo por duas polegadas, afronta para todo o Brasil. Jurados de Miss Brasil: Pompeu de Souza, Manuel Bandeira, Santa Rosa, Helena Silveira, Amando Fontes, Paulo Mendes Campos e eu. Adalgisa Colombo resgatando a honra nacional.
Concurso de Miss Bangu. As debutantes do Copa. Waldir Calmon e seu piano no Arpège, Djalma Ferreira no Drink, em frente ao Vogue. O incêndio do Vogue! Só o Dantinhas escapou. No Sacha´s, o próprio ao piano, Cipó no sax, depois do terceiro uísque, eu na bateria.
Falta d´água no Rio, Posto 6 conhecido como Polígono das Secas. Lata d ´água na cabeça, lá vai Maria. 
Roteiro do chope em Ipanema: Jangadeiro, Veloso, Zepelim, Bar da Lagoa.
NO JOQUEI Clube, num só dia, almoçando em mesas diferentes: Eurico Gaspar Dutra, Santos Villis, Assis Chateaubriand, Lopo Coelho, Paulo Bittencourt, Edmundo Lins. 
 E o Brasil, de meta em meta, avançando cinquenta anos em cinco.  O JK não passava de um Alfa-Romeo disfarçado de carros brasileiro. O Simca Chambord dava um toque de classe e elegância. E os primeiros fusquinhas de fabricação nacional já circulando. Vai da valsa! Estou aí nessa marmita? 
"Ouça", na voz quente e sensual de Maysa.
 BRASIL, campeão do mundo. Nilton Santos, Didi, Pelé, Garrincha - com  esses quatro qualquer time ganharia a Copa. 
Alvorecer da Bossa Nova: João Gilberto cantando  "Chega de Saudade". Altamiro Carrilho e sua Bandinha todo domingo na TV Tupi. Gilson Amado toda noite na TV Eldorado.  Para encerrar, programa de Al Neto - Nêto, digam por favor.
Rítmos da Panair pela Rádio Jornal do Brasil, a partir de meia-noite. Diretamente do "Meia-Noite" no Copacabana Palace.  Nas asas de um Constellaction! Por falar nisso, Marlene fez ou não fez sucesso no Olympia de Paris?  Di Cavalcanti diz que fez, ele estava lá. Pois tome Urodonal e viva contente. Eu vou para Maracangalha, eu vou.
Filas para ver no cinema "Suplício de uma Saudade", com Jennifer Jones, "Pic-nic", com William Holden e Kim Novac.
Jesus está chamando Alziro Zarur toda noite pelo rádio.  Tônia-Celi--Aitran em "Calúnia", no Mesbla,  "O Santo e a Porca", com Cacilda Becker no Dulcina. "Moral em Concordata", com Maria dela Costa, no Carlos Gomes. Marcelino Pão e Vinho saíndo das telas e vindo em pessoa nos visitar. Elizeth Cardoso cantando no Au Bon Gourmet. Quem é melhor: Emilinha Borba ou Marlene? 
Legal. Tudo azul. É com esse que eu vou.
Os lotações. O ônibus Camões, com a frente caolha. Ainda havia bondes: o mata-paulista, no Túnel Novo.
Virgínia Lane: bom mesmo é mulher. Jorge Amado: Gabirela, Cravo e Canela. Operação Pan Americana, JK se agitando. Seu talão vale um milhão.
Dançando ao som de Ray Conniff e sua orquestra. 
Inauguração de Brasília! Pílulas de vida do doutor Ross fazem bem ao figado de todos nós. Ary Barroso: risque o meu nome do seu caderno. Uma passada no Maxim´spra saber do Freddy as novidades, depois no Michel, depois no Scotch Bar. Sopa de cebolas no Roun Point. 
Ah, o Rio de Janeiro nos anos dourados! A noite começava às seis horas com o show para os senadores do Night and Day, enquanto a patota literária bebia no Juca´s Bar.  Esticada no Montecarlo, naquele morro da Rua Marquês de São Vicente, ou Casablanca, na Praia Vermelha.  Para encerrar, um filé no Lamas, Largo do Machado. Se estiver clareando o dia, ostras frescas no mercado da Praça 15. Dá-lhes, Rigoni! É com esse que eu vou...
"Mona Lisa", na voz de Nat King Cole.
COLUNISTAS sociais: Marcos André, Gilberto Trompovski. Mas bom mesmo era Jacinto de Thormes, antes que Ibrahim Sued ficasse absoluto. "How High The Moon" por Dizzi Gillespie, anunciando a era do bobop.
Orfeu Negro, sucesso internacional.  "Vai que É Mole", com Ankito e Grande Otelo. 
Drops Dulcora, embrulhadinhos um a um. Com os 6 milhões de eleitores de Jânio Quadros.
The Platsters cantando "Only YYou".
Anos dourados... No momento, é o que me lembro. Depois foram ficando azinhavrados, enferrujados, meio carcomidos a partir de Jango. E deu no que deu. Vieram os anos de chumbo da ditadura. Deu no que se sabe..."

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          Texto longo, né, mas valeu.
Me digam, então, os sessentões e os setentões se cada linha, cada parágrafo desta crônica do Fernando não arranca, dos senhores, suspiros de saudade?Contem pros seus filhos, seus netos que foram testemunhas dos "anos dourados".
Deixem que eles comparem aquele mundo com "o mundo atormentado e hostil dos nossos dias" e  ouçam o que eles lhes vão dizer.



    


 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 28/05/2010
Reeditado em 17/12/2019
Código do texto: T2285218
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