Espingarda e morcegos

Corria o ano de 1970. Era junho, época de São João e copa do mundo. Rezende, um amigo do ginásio, havia fabricado artesanalmente uma espingarda, utilizando restos de madeira, cano e e aspas metálicas. Pareceu-me uma obra-prima da armaria de tão bem acabada e projetada. Decidi comprá-la, mas, antes, teria que experimentá-la.

Inexperiente na lida com armas, juntei a molecada da rua, irmãos e amigos, e fomos todos comprar pólvora, chumbo e espoletas para fazer funcionar o trabuco. Não havia casas especializadas no bairro e, mesmo que houvesse, não nos venderiam os ítens procurados. Foi aí que tive uma idéia brilhante: -Vamos comprar duas bombas das grandes (chamadas de 20 por custarem vinte centavos) e utilizar a carga na arma. Todos concordaram excitados. Para a espoleta compramos aquelas utilizadas em revólveres de brinquedo com pontos imprimidos numa fina tira de papel vermelho. Uma vez municiados partimos em excursão para o interior da Mata do Buraquinho, uma reserva florestal, resquício da Mata Atlântica, com enormes árvores onde o sol não penetrava. Carregamos o cano com a carga explosiva, socamos com uma vareta,depois colocamos pedrinhas de seixo rolado como substitutos dos projéteis.

Assim, armada a espingarda, procuramos um alvo vivo para testá-la. Não havia pássaros visíveis e disponíveis àquela hora do dia. Nenhum ser rastejante tampouco dava o ar de sua graça. Até que, no alto de uma antiga mangueira, divisamos um cupinzeiro que abrigava uma grande família de morcegos. -Seriam eles o alvo perfeito! Pensamos.

Engatilhei a arma enquanto os outros meninos me pediam para atirar no meu lugar. Eu, todo poderoso e egoísta, negava peremptoriamente a hipótese. Mirei e puxei o gatilho, mas não houve nenhum estampido. A espoleta havia caído ao chão. Nova agitação na turma. Insisti que o direito do primeiro tiro era exclusivamente meu. Prendi a espoleta com um pouco de saliva ao orifício que dava acesso à carga de pólvora. Mirei novamente para os inocentes morcegos e mandei fogo.

A arma explodiu por inteira em meu rosto. Senti um estrondo impressionante, um deslocamento de ar na minha face seguido de tonturas e náuseas. Um zumbido ocupava os meus tímpanos. O abalo foi aterrorizante. Via tudo enevoado e em câmera-lenta. Vislumbrava as feições dos colegas a me olharem estupefatos com um misto de riso e espanto. As vozes repetiam-se como ecos em meu crânio.

Olhei apalermado para os pedaços fumegantes da arma que restavam em minhas mãos trêmulas. Senti um gosto de sangue e pólvora na boca, mas não desmaiei. Aos poucos fui recobrando o controle de mim mesmo e aí percebi que estava machucado. Meu rosto estava sangrando e não conseguia enxergar normalmente pelo olho direito, que ardia e lacrimejava bastante. E os morcegos nem sequer fugiram do local!

Fui caminhando, amparado pelos outros, até em casa. Minha mãe apavorou-se e encaminhou-me para a sede do jornal O Norte, onde meu pai era redator. Ele levou-me à uma clínica onde o oftalmologista explicou que infinitos grãos de areia estavam estampando a minha córnea ( meu pai disse depois que a imagem parecia a de um céu estrelado) e não poderiam ser removidos. Com o tempo, talvez o organismo expulsasse-os naturalmente.

Bom, eu não iria perder o olho. E assim, de tapa-olho de pirata, o rosto todo pintado de mercúrio-cromo, ferido na alma e no meu orgulho, tornei-me um herói; um guerreiro honrosamente abatido, perante meus semelhantes peraltas.


Edmar Claudio
Enviado por Edmar Claudio em 30/08/2006
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