NÃO ME QUEIRAS / NÃO TE QUERO
 
 
 

Não lembro qual foi o pé, se o direito ou esquerdo que coloquei pra fora da cama ao levantar, o certo que estava com cara de quem chora sem lágrimas ou de quem provou jiló e não gostou nadinha. Esta foi a imagem refletida que vi de mim no espelho. E, se como diz o Chang Chao, que ganso é uma ave lamentosa e cuco é lúgubre, com toda certeza, estes me serviriam de boas companhias. Isto enquanto não cresce no meu jardim a flor do “ afoga-tristeza” e a erva “não te aflijas”.
 
Enquanto isto não acontece, vou sentar na pedra, colocar a mão no queixo, mergulhar no tempo até alcançar o ano  701 a.C e me sentir o próprio Li Po e imaginar que o Universo é um albergue para miríades de coisas, e o próprio tempo é um hóspede dos séculos, em viagem. Acreditando que esta vida flutuante é um sonho. Para indagar finalmente, quantas vezes podemos ter prazer conosco mesmo.
 
Sai do meu estado letárgico por conta de uma batida de mão no meu ombro esquerdo. Era o jardineiro, de sorriso largo, avisando-me de que a flor “afoga tristeza” e a erva “não te aflijas” haviam crescido e entregou-me uma de cada.   Senti o efeito imediato. Tristeza e aflição foram-se
 
À minha frente,  permanecia ainda o jardineiro, indaguei-lhe a razão, disse-me ele meio gaguejando : são mais estas duas rosas que lhe deixaram... São diferentes...Tem nome estas rosas? Tem sim senhora. Foi a resposta. Então, diga-me. E foi-me dito de pronto: “Não me queiras” / “Não te quero” . Sabia quem as tinha enviado... mas, como já não existia tristeza nem aflição, restou-me a aceitação do imposto subentendido  e sem invadir espaço, com cara de boba, de menina ruim, pus-me a repetir baixinho: mesmo assim eu te amo / eu te amo / eu te amo / eu te amo...
Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 27/05/2010
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