O PERIGO DE VIVER (COM GUIMARÃES ROSA)

Por isso digo, é o que sempre falo – o perigo de viver. É só abrir os olhos, os ouvidos, ouvir o que a voz do povo matraca. Tudo nos convence, de que viver é muito perigoso. Tem gente que já nasce com o demo no corpo, outros até nascem santos, puros, mas as maldades do mundo... Ou pai ruim, mãe ruim, mulher destramelada vai dimudando a pessoa e ela acaba que nem o demo. Estúrdia vi naquele aparelho novo, onde aparece todas as maldades do mundo, um sujeito de olhos esbugalhados, falando que matou sim, “matei mesmo, um pai e o filho.”. Ele cheirava e tomava um chá bravo – Santo Daime – sei lá, que bota as pessoas zonzas, fora do mundo, sem saber o que faz. Olha, o mundo está de pernas para o ar. Nas terras onde Jesus Cristo nasceu - Nossa Senhora, aqueles santos todos - só fazem brigar e matar. É tanta maldade, compadre, que nem dá para acreditar. Aqui também, é pai jogando filha pela janela, e homem usando as mulheres e depois estrangulando... Olha, não é só gente pobre, não! Gente rica, governador, deputado... não sei das quantas roubando mesmo. Não é moedinha ou assalto para roubar relógio, essas coisinhas não! É dinheiro gordo, milhões, compadre. Milhões que vão enfiando nas meias e cuecas. Outra coisa que vi e assustei foi num país ai, acho Estados Unidos, sei não, mandou tirar todos os crucifixos das paredes das escolas, lugares de trabalho, até das montanhas... Disseram que não pode. Vi um terreno enorme cheinho de crucifixos jogados, amontoados. Isto não é coisa do demo?! Só pode ser! Falei até para minha mulher. A coisa está ficando feia! É fim do mundo! Precisamos rezar. Eu sou assim, tenho muito temor de consciência e gosto de ser assistido pelos espíritos. A gente carece escolher ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só religião, só. Eu podia até ser padre mas para isso não fui parido. Mas, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio. Rezo cristão, católico, aceito preces do compadre, doutrina dele, de Cardeque. Quando posso vou com Matias que é crente Metodista. Leio alto a Bíblia, oro cantando hinos belos deles. Tudo me inquieta, me suspende. Vou a Maria Leôncia, preta velha, muito longe daqui. As rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago todo mês para rezar o terço todia e, nos domingos o rosário. Quero um punhado dessas me defendendo em Deus todia. Viver é muito perigoso! O mais penso, testo e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura. Deus é paciência. O contrário é o diabo. Se gasteja. O senhor sabe, o perigo é viver. Por isso não perco um sermão de padre. Mesmo no céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos, tantas maldades, no recebido e no dado? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais. Outro dia, meu compadre disse: - Por perto do céu a gente se alimpa tanto que todos os feios passados se exalam de não ser. Assim que: tosou-se, floreou-se. Por isso é que a ida para o céu é demorada. Todo mal que se faz, um dia se repara – o exato. O mais importante e bonito do mundo é isto, as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior é o que a vida ensinou. Isso me alegra de montão. Não ache que a religião afraca. Ache o contrário. Acha fio de verdade, nessa parlanda, de que com o demônio, se pode tratar pacto? Vende sua própria alma? ... Invencionisse falsa? Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento – não tem a obediência legal. Se tem alma e tem, ela é de Deus, estabelecida nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível! Ela é de Deus. Sabe, sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso! Quem me ensinou tudo isso foi Diadorim... Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. No nosso meio não é comum amizades estreitas, mas cada um é feito um por si. De nós dois juntos ninguém nada não falava. Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Diadorim, duro, sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a boca mas era um delém que me tirava para ele – o irre – medieval, extenso da vida. Eu me esquecia de tudo num espairecer de contentamento deixava de pensar. Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue, manda sangue. Não gastava palavras... Desde o começo apreciei aquela fortaleza; o segredo dele era pedra. Só não entendia como sua alma, pura, terna, ensinando-me a beleza da vida pudesse ser tão dura.

Maria Eneida
Enviado por Maria Eneida em 26/05/2010
Código do texto: T2280181
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