Culto à personalidade
Minha geração lia uma revistinha americana chamada “Seleções do Reader’s Digest”, uma compilação de matérias publicadas pela imprensa ianque, geralmente promovendo o estilo de vida americano e combatendo o comunismo, na época da guerra fria. Nela havia uma sessão chamada “Meu tipo inesquecível”, onde se enfocava uma personalidade que marcou a vida de alguém.
Pois meu tipo inesquecível morava em Itabaiana, um distinto senhor chamado Estevão, comerciante de grãos, pessoa bondosa que muito ajudou minha família em tempos difíceis. Meu pai adoecera gravemente, passou muitos meses no hospital. Quando saiu de lá, teve a ajuda do senhor Estevão para reerguer-se. Esse senhor foi padrinho de minha irmã Vasti, batizada na fé católica apesar de nossas origens protestantes, tudo em deferência ao nosso benfeitor, católico fervoroso.
Morávamos em frente ao coreto, nos fundos de uma antiga mansão com paredes cobertas de azulejos portugueses. Pertencia a dona Joana, uma matriarca do lugar. O passado é desfile que passa e não volta. Mas os abalos afetivos ou morais continuam refletindo em nossas vidas, para sempre. Naquela época tive um momento inesquecível aos olhos de um garoto de 12 anos. Nosso bom Estevão ofereceu-se para comprar uma roupa nova para o Fabinho, que andava meio jogado fora, com as calças curtas já gastas e ralas pelo uso constante, camisa imprestável para ir à escola.
Levado pelo meu protetor, fui à loja de Inácio Ramos Cavalcante, “A Barateira”, comprar roupa nova. Chegando lá, o empregado notou que se tratava de um caso de caridade, trouxe uma roupinha barata, de pano inferior, dessas que o povo chamava “rói rola”. O magnânimo Estevão protestou na hora, revoltado: “Você sabe quem é esse garoto? É o Fábio Mozart! Traga a melhor roupa que houver na casa, e o sapato mais caro.” O balconista olhou aquele homenzarrão de pele entre o pardo e o negro de través, certamente julgando-o um lunático. Passando por cima de seus preconceitos, o homem trouxe as melhores roupas do estoque para minha escolha. Saí da loja flutuando.
Passei muito tempo só meditando na maneira destacada como o senhor Estevão pronunciou meu nome para o cara da loja, e o espanto do homem olhando para mim, querendo adivinhar de onde vinha meu prestígio enfatizado por ele. Senti-me um forasteiro nas ruas de minha Itabaiana. Um personagem diferente, digno de consideração e apreço. Passei a olhar o mundo com outros olhos, embarcado que fui naquela canoa que me levou pelo rio da autoestima.
Desde esse dia, no meio de tantas fantasias que passaram na meninice, sempre retenho essa lembrança na memória, com um oculto desejo de procurar corresponder ao realce marcante com que ele pronunciou meu nome. Penso que esse episódio vem até hoje ajudando a neutralizar complexos e neuras do velho Fabinho.