O GRANDE CIRCO MÍSTICO
O Teatro Guaíra está lotado. Sento ao lado de minhas companheiras, ambas de sete anos, que aguardam ansiosas o início do espetáculo. Tudo é novidade, o palco, as cortinas com desenhos de remendos...
“Acho que todos os dias do ano não cabem nos quadradinhos...”
“Todas as cortinas são assim?”
O primeiro personagem surge em gestos largos. Presenciamos o nascimento da história, as músicas ganham força nos corpos perfeitos que desenham os movimentos. Olhos brilhantes refletem a pluralidade de cores no palco. O silêncio é reflexo da força das músicas compostas por Chico Buarque e Edu Lobo.
“Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz...”
Beatriz surge com movimentos que flutuam no céu das fantasias. A equilibrista desenha as estrelas que acendem nossos brilhos infantis. Somos embalados na suavidade da bailarina. O desejo cria novas perspectivas e rabisca algumas inquietações. O amor é encenado no encontro ideal sob um céu prateado na tênue linha de nossas trajetórias.
“Sim, me leve para sempre, Beatriz
Me ensine a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz que é perigoso a gente ser feliz...”
Cada geração representa a possibilidade do encontro com a alegria, da imortalidade do circo. Os palhaços, domadores, bailarinas... Todos são personagens dos sonhos nos carrosséis e nos trapézios de nossas construções individuais.
Minha filha e sua amiguinha não piscam. Estão enfeitiçadas pela emoção encenada na “ponta” de cada bailarina, nos corpos perfeitos que deslizam no palco como realidades, nos sorrisos coloridos dos personagens, nas lágrimas do grupo de pierrôs, nos intensos brilhos das purpurinas e dos grandes balões transparentes... Todos somos reféns das fantasias circenses.
Intervalo. Cerram as cortinas e as luzes são acesas. Na fila dos doces, presencio o diálogo das pequenas. Falam sem parar, concretizam na estrutura dos primeiros aprendizados a poesia que aprendem com a emoção. Começam os questionamentos:
“Como nascem os filhos no palco?”
“O que aconteceu com a Beatriz?”
“O que significa gerações?”
Tento responder que são representações, mas crio uma nova e misteriosa palavra.
“O que são representações?’
“O que representavam os cavalinhos com luzes do carrossel?”
“E os sapatos deixados pela bailarina no palco, o que representam?”
Silenciam as indagações com o início do segundo ato. Somos novamente hipnotizados pela beleza dos encontros e desencontros. Reconstruímos as tendas de nossas infâncias e conseguimos perceber como são coloridas as realizações e como precisamos lutar pelo que acreditamos.
“Não sei se é um truque banal
Se um invisível cordão
Sustenta a vida real...”
Quando a cortina com remendos encerra o espetáculo, compreendo que ela significa a possibilidade de costurar nossas vivências com as fantasias infantis tão presentes no circo do mundo. Minhas pequenas companheiras saltam das cadeiras e aplaudem de pé. Aos poucos, todos se levantam e passamos algum tempo saudando os sorridentes bailarinos, intérpretes de nossos “eus” desejados.
“Bravo!” Gritavam as meninas, repetindo a palavra que ecoava por todo o teatro.
A alegria do público eleva-se aos mundos místicos. Entrega-se à sustentação dos circos possíveis.
“Chove tanta flor
Que, sem refletir
Um ardoroso espectador
Vira colibri...”
Barbarella e Marina correm em direção ao palco e somem nas laterais. Sigo-as com a responsabilidade dos adultos, mas no íntimo sinto-me realizada com a ousadia das pequenas. Quando consegui encontrá-las, estavam nos camarins junto com os bailarinos e muitos convidados. O palhaço, as dançarinas, Beatriz... Todos eram pessoas reais, rodeadas por amigos... Novas exclamações:
“Como estão suados!”
“Quero ver a Beatriz!”
Depois de alguns comentários inocentes e muitos cumprimentos, saímos. No palco, as duas começam a cantar e rodopiar pelo tablado. Bailam as representações com a sombreada iluminação das lembranças.
Perdi a realidade na imensidão do teatro visto do palco e pude ver, sentadinha no primeiro balcão, uma menina de quase sete anos deslumbrada com o primeiro balé. Cachos dourados, vestidinho xadrez e sapatos de verniz... Consegui me reconhecer assistindo ao bolero de Ravel, da Companhia de Maurice Bejárt no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Um bailarino loiro, vestindo uma malha vermelha, dançando numa superfície negra... Tudo presente. A música, os movimentos, a emoção, a menina deslumbrada... Nunca esqueci a beleza daquele momento, a intensidade dos movimentos, a força da música que desvirginou as representações com a realidade possível na coreografia dinâmica do intérprete.
Cerram as cortinas remendadas de anos...
As duas cansam de suas piruetas e recomeçam a conversa, sempre intercalando a palavra representação. Sinto vontade de rir, mas compreendo a intensidade daquele instante e respondo com seriedade aos questionamentos... A emoção sempre será o grande alicerce para as verdadeiras representações.
“Manhê, sabe o que vou ser quando crescer?”
Alguns instantes de silêncio. Pensei que todos os personagens encenados eram futuros desejados pela criança. Ainda assim, arrisquei:
“Bailarina?”
“Não, mãe! Quero ser Beatriz!”
O significado do nome brilhou em minha memória - “a que faz os outros felizes”. Fui dominada pela forte emoção de ser a mãe de um ideal, de uma realização. Ela desconhecia a importância do nome e ainda sim desejava ser a maturidade da lona que abrigava nossa relação. Com a voz embargada, murmurei enquanto a abraçava:
“Já é Barbarella. Você sempre será minha Beatriz...”
O Balé do Teatro Guaíra é o criador do “O grande circo místico”, com a trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo. Apresentado pela primeira vez em 1983, o balé é baseado no poema de Jorge de Lima - “O grande circo místico” (1938), inspirado na história da família Knieps e do circo conhecido mundialmente.