UM CRAQUE DE QUATRO PATAS
Quando aquela bola peluda chegou lá em casa eu me imaginei jogando com ela. Mas era apenas um cachorrinho que minha mãe ganhara e que se revelaria, mais tarde, um verdadeiro craque de futebol, um dos melhores que conheci, melhor até que alguns amigos meus daquela época.
Foi criado dentro de casa, em consideração à sua especial condição de órfão. Dormia dentro de uma cesta de vime e tinha sua própria mamadeira o que poderia, com bastante certeza, ter prejudicado a sua afirmação como representante da raça canina. Para parecer um gato faltava apenas que o chamassem de Mimi. Felizmente isso não aconteceu e, entre novelos de lã e outros que tais, foi tomando gosto por correr atrás de qualquer coisa que tivesse o formato mais ou menos esférico.
Essa sua predileção e o fato de estarmos em um ano de Copa do Mundo com destaque especial para algumas grandes estrelas de nossa Seleção, determinou a escolha de seu nome – Garrincha. É claro que o nome óbvio seria Pelé mas já haviam cachorros demais com esse nome na vizinhança , nenhum com o menor pendor futebolístico.
Assim que ele cresceu um pouco, começamos os treinamentos. De início, o básico: jogar uma bola e pedir para ele ir buscar. Aí já começou a surpreender, pois ao invés de trazê-la na boca, vinha correndo , controlando a bola com as patas dianteiras até chegar onde eu estava. De pronto, voltava correndo para sua posição aguardando um novo chute meu.
Com o tempo foi desenvolvendo cada vez mais sua habilidade com a bola, a ponto de participar de nossas infindáveis peladas em improvisados campinhos cheios de rosetas e outros espinhos. Ás vezes essas disputas ocorriam em plena rua, com intervalos bastante freqüentes para a passagem de carroças e automóveis, estes também alvo da perseguição de nosso craque que exibia uma especial predileção por atacar pneus em movimento.
Muitas vezes era escalado para atuar como goleiro, posição para a qual nunca se apresentavam candidatos. Desempenhava relativamente bem essa função, ajudado pela combinação que tínhamos de chutar somente bolas rasteiras e sem força excessiva. Sofreu algumas críticas, é verdade, principalmente por trocar uma defesa fácil pela perseguição de algum gato colocado em campo pelo time adversário.
Teve uma carreira longa para um craque da sua espécie, abandonando o esporte com dez ou onze anos diante de uma grave contusão sofrida fora de campo, parece que em um disputa amorosa bem característica de seu comportamento “bad dog”, sempre pronto para noitadas bastante barulhentas e tumultuadas, mais um ponto em comum com muitos jogadores daquela e de outras épocas.
Sua companhia nos últimos meses de vida foi uma velha bola, quase murcha, que ele fazia questão de ter entre suas patas quando, imóvel, parecia perdido em lembranças dos tempos em que fez parte daqueles inesquecíveis dias de puro encantamento e alegria.
Hoje relembro essas histórias e a saudade do meu parceiro me transporta aos dias em que, pés descalços, peito ao vento, corria atrás de uma bola as vezes inatingível como muitos dos sonhos desse menino que desperta, neste momento, dentro de mim....