Rousseau x Hume
Recebo de “los hermanos” argentinos uma revista de xadrez com a informação de que os filósofos Rousseau e David Hume costumavam jogar xadrez no famoso Café de La Régence, em Paris, por volta de 1766, um pouquinho antes da Revolução Francesa. Esse Café se situa atualmente na Praça de Palais Royal. Naquele lugar, jogaram Robespierre, o jovem Napoleão Bonaparte, Voltaire, Diderot, Musset, Victor Hugo, Balzac e muitos outros. Era uma época em que, ainda, se jogava o xadrez romântico e foi justamente com esse romantismo que Rousseau ganhou uma das partidas do cerebral Hume.
A partida, que podemos chamar de miniatura, porque terminou com pouquíssimos lances, foi a seguinte:
Brancas: Rousseau 1 - Negras: Hume 0
1. e4 d6 ; 2. Cf3 Cd7 ; 3. Bc4 e5 ; 4. d4 c5 ; 5. dxe5 dxe5 ; 6. Cc3 Be7 ; 7. Dd5 Ch6 ; 8. Bxh6 0-0 ; 9. Be3 Db6 ; 10. Cxe5 Dxb2; 11.Cxf7 Dxa1+; 12.Rd2 Dxh1; 13.Ch6+Rh8; 14.Dg8+Txg8; 15.Cf7++ 1:0
Registrei a partida para que os leitores possam reproduzir, mesmo aqueles que nada entendam de xadrez, com a ajuda de alguém que saiba. Não perderão mais do que cinco minutos, se tanto. Por certo, irão sentir o gostinho desse magnífico “jogo-arte-ciência” e terão prazer em ver o xeque-mate artístico aplicado pelo velho Jean-Jacques Rousseau. O sinal ++, no décimo quinto lance, significa o tão conhecido xeque-mate. Uma partida histórica, gente! É, sem dúvida, também uma obra de arte, para a fase romântica da época. Caso reproduzam, gostarão muito! É preciso esclarecer, no entanto, que os dois, hoje, seriam considerados jogadores medíocres. E o próprio Rousseau reconhecia sua mediocridade no jogo.
Rousseau, conta-nos a história dos filósofos, era extremamente neurótico e teve uma fase de delírio de perseguição. Um tremendo paranóico. Nesta fase, Hume, condoído, abrigou Rousseau em sua casa na Inglaterra. Hume é tão maltratado pelo autor do “Contrato Social” e “Emílio”, que acabou cansando-se do amigo e, ao publicar toda a correspondência entre os dois, deu um ponto final nas suas relações, tachando Rousseau – aquele que dizia que o homem era bom por natureza e a sociedade é que o corrompia – "como o mais sombrio e horroroso vilão que existe no mundo". Hume, que era um cavalheiro, desancou o “maluco” do Rousseau.
O americano Adam Smith, o pai da economia moderna, afirmou ter Hume, autor do “Tratado da Natureza Humana”, se aproximado tão perto do perfeito sábio e homem virtuoso, quanto o permite a fragilidade humana. Um exagero, sem dúvida, e já é tempo de acabar com essa mania de se endeusar as pessoas. Mas os dois eram muito amigos, sabe como é... O Smith chegou até a receber parte da herança do Hume. Eu, pessoalmente, poucas vezes vi, é verdade, alguém escrever tão bem quanto Hume. Mas, enfatizo: era apenas um homem. Admirar, sim, endeusar, nunca!
Esta partida de xadrez entre dois “monstros sagrados” nos dá a oportunidade de abandonarmos de vez com nosso lado juvenil, imaginando que existe gente intocável e que sabe tudo da vida. Ora, ora! Como estou gostando de derrubar estes ídolos de barro, essas pessoinhas, iguais a todo mundo, que sabem tanto quanto nós... Os chamados filósofos transcendentais são, para mim, os mais perniciosos, pois têm obsessão pelo “absoluto”, fugindo para uma suposta região onde não existem problemas. Se ao menos fossem poetas... Essa minha descoberta, embora tardia, de derrubar os ídolos do Teatro, como dizia Francis Bacon, tem sido minha alegria. Os mundos criados pelos filósofos são irreais. Com aquele gosto de quem “mata a cobra e mostra o pau”, vejo os meus queridos filósofos na sua real dimensão: simplesmente, homens. Ora, ora! Embora difícil, tinham obrigação de jogar bem o xadrez!