As bem ou mal traçadas linhas das cartas
 
Aquele que escreve cartas
não apenas cola selos
num envelope de nuvens
lançado sobre o horizonte.
espera que quem recebe
saiba ler na linha d’água
a sede do eterno instante
e jorre afeto e resposta
num diálogo de fontes
.*

 
               As cartas estiveram presentes em minha vida de menina da roça desde sempre, pois era dessa forma que recebíamos notícias dos parentes e amigos distantes. Não havia posto de correio onde morávamos e lembro bem de minha avó sintonizando no velho rádio ABC uma emissora local que abria do meio dia há uma da tarde e anunciava para os sítios, fazendas e lugarejos as correspondências que se encontravam no posto do correio da cidade.
             Minha mãe, professora de muitas gerações, leu e escreveu muitas cartas de “encomenda”. Famílias inteiras que recorriam a seus serviços e a gente ficava sabendo da vida de todo mundo do lugar. Eu sempre dava um jeito de ouvir a leitura e me alegrava ou entristecia com o teor, quase na mesma proporção do  “dono ou dona”da carta.
             Por essa época, li uma carta que me deixou impressionada: peguei emprestado um livro da estante da escola e, ao chegar em casa na hora de iniciar a leitura, caiu um papel. Abri e comecei a ler, curiosa. Era uma carta muito triste, mas muito bonita. De alguém que reclamava de solidão, de como sua vida era infeliz. Também pedia perdão a outra pessoa (não sei se homem ou mulher) por sua falta de coragem, por não lutar para mudar aquela vida. Fiquei tão impressionada que li um monte de vezes, imaginando quem seria, mas adorei aquele jeito tão íntimo, tão eloquente de dizer certas coisas.
              Adolescente, resolvi que devia escrever cartas. Peguei um endereço de um garoto que dizia colecionar selos e cartões no “correio da amizade” de uma revista do tio Patinhas e ganhei um amigo a distancia. Sentia-me muito importante quando o correio me chamava. “– Senhora Edna Maria Lopes ?” Lembro a sensação boa de abrir a carta, ter notícias, saber a opinião ou a resposta de determinado assunto.
             Por estes tempos as cartas ainda eram fundamentais para se consolidar uma amizade. Troquei correspondência com ex colegas de escola, com amigos que moravam em outras cidades, outros países. Também entabulei paqueras, namoricos...Porém se o “pretendente” não demonstrasse ser capaz de escrever, “algo tão simples como uma carta” não “servia” nem para amigo.
            Levei esse “critério” tão a sério pela vida a fora que meu companheiro, antes muito antes de qualquer interesse afetivo, foi um amigo de correspondência. Aprendemos a conhecer um ao outro através da troca de informações, aos poucos, revelávamos nossos gostos, nosso temperamento, o modo como conduzíamos nossas vidas.Quando nos reencontramos, já havia uma intimidade construída e o namoro evoluiu.
            Pretensiosa e nada modesta, ouso dizer que as cartas que escrevi convenceriam mesmo que eu era alguém que valia a pena conhecer, se relacionar, conviver.Ouso dizer que ainda sou...
            Gosto imensamente de escrever e, em especial, escrever cartas. Gosto da linguagem direta, intimista. Escrever em nome de alguém, me colocando na posição de quem tem um sentimento, algo a dizer e precisa que o mundo saiba é algo maravilhoso. Na escrita de cartas me permito uma intimidade, uma exposição de sentimentos que talvez, não saiba fazê-lo, pessoalmente. Diante de alguém a quem escrevo me imagino numa conversa olho no olho, numa afetuosa e cálida atenção.
           Na literatura universal, há muita gente boa que se comunicou e se comunica por “epístolas”. Posso lembrar-me de um bom número, a começar pela Bíblia.São Paulo fez das cartas meio didático para a evangelização a muitos povos.Lembro de Sêneca e sua cartas a Virgilio, que muitos duvidam que existiu e afirmam que o autor escrevia a si mesmo. Lembro das cartas de amor desesperadas atribuídas a freira portuguesa Sóror Mariana Alcanforado, a Carta de Caminha, as cartas de Rilke e, certamente, irão lembrar-se de muitos mais.
           Na literatura brasileira, em especial, há igualmente muitos bons exemplos. Mário de Andrade, Fernando Sabino, Graciliano Ramos, Clarice Lispector... Descobri dias desses num sebo um de Monteiro Lobato e estou me deliciando.
           Em tempos globalizados, o email, as mensagens instantâneas atendem a nossa necessidade de comunicação, porém nada substitui a emoção de ler uma carta, um bilhete pequeno que seja, um comunicado de alguém que está distante. Saber que elaborou um pensamento para partilhar e o concretizou na escrita. E mais: foi ao correio, despachou e ficou torcendo para que alguém responda: recebi!
            E quando leio que cartas não é um gênero textual de prestigio, pela temporalidade e/ou por qualquer outro argumento, não me importo. Quando sinto vontade de escrevê-las o faço com o mesmo desvelo de um poema, de uma crônica, de um conto.
           “Literatura, o que é, senão um letras/lettres/leters? Quem escreve romance, poema e ensaio, na verdade joga cartas ao acaso, na posta restante das livrarias e bibliotecas.E muitos livros são cartas/ respostas a outros livros.Quem escreve quer ser correspondido.Quem não quer respostas escreve diários, que mesmo assim costumam ser publicados. A crônica, o que é, senão a carta da manhã?” *
              Cartas estão no cancioneiro popular, no cinema. Cartas estão no imaginário da poesia e da prosa, estão no anonimato covarde, na paixão que transborda.Tantas cartas que já escrevi e nunca enviei!Portanto, aqui ratifico o argumento do poeta e Mestre Affonso: o que tento escrever também são cartas e fico imensamente feliz com as respostas de puro carinho às “cartas “ que aqui publico. Que tal escrever uma carta, AGORA?


 
*Fragmentos da crônica CARTAS: A PAIXÃO ESCRITA, publicada no livro O homem que conheceu o amor de Affonso Romano de Sant’Anna.


Da Série Leituras Inesquecíveis (VIII)