O baú de recordações se abriu uma segunda vez

Para quem nasceu sob o seio da Igreja Católica, batizados é coisa perfeitamente (a)normal, ver crianças esperneando após um mergulho em água benta, que de benta não tem nada, é como tomar uma vacina no rabo. A irritação na cara da criança é similar, acho até uma crueldade expor um pequeno ser a um ritual tão, marcadamente intenso, só de ver estampado no seu rosto lágrimas de sofrimento, me leva a questionar este passatempo burlesco a quem a religião chama de marcação das suas ovelhas. As ovelhas deveriam ter o poder de escolher o rebanho, jamais deveríamos ser obrigados à nascença a entrar numa porta, seria justo que tivéssemos a liberdade de escolher entre as várias portas existentes na praça pública. Não que uma seja melhor do que a outra, apenas sinto que cada um deve ser dono de si. Nesse dia, quando o bebê chorava, eu estava perto, bem perto, tão perto que quase podia sentir em “Slow Motion” as gotículas de água sobre a careca da criança; fora escolhido por meu tio para padrinho desse rebento, em si, o gesto me agradou de sobremaneira, senti-me aos 15 anos com uma responsabilidade acima do meu tamanho. Era um desafio enorme para um garoto que tinha acabado de completar a Crisma – última etapa da marcação dos fiéis. Mas eu, a agarrei com firmeza, não sabendo muito bem gerir o momento, aproximei-me daquela criança de olhos azuis claros, de pele clarinha como a neve, seus bracinhos eram tão frágeis, frágeis como o sino que balançava dando conta do acontecimento, que ao mínimo contato com meus lábios estremeceram de curiosidade. No seu íntimo, ele deveria estar pensando: o que é que eu faço no meio destes abutres todos?

Do lado de fora, um fotógrafo barbudo balançava o esqueleto para encontrar as melhores posições para conseguir as fotos perfeitas. De mim ele não conseguirá nenhuma de jeito! Não sou fotogênico, serei mais... “feiogénico”, sempre achei que as fotos são destinadas a pessoas muito belas, e como eu não entro nesse grupo, arrisco-me a ficar sempre fora dos álbuns de família, mas também não sou assim tão feio, ou sou? Esta agora me pegou - não, não sou - me desvalorizei em demasia, o problema pode até nem ser meu, mas das máquinas fotográficas que me deixam sempre pálido, à beira da morte. Pareço um defunto com olhos vermelhos, meus olhos sempre ficam vermelhos ou fechados - devo ter algum tique quando o flash dispara.

Tirando isso, eu estava impecável – diga-se de passagem, até demais, parecia um frango assado dentro de um paletó com laço, bem apertado, quase esganando meu pescoço – disse-te mãe que não queria o raio do laço azul. Tanto cismaste que eu tive que aceitar a idéia; não me apanharás em outra arapuca, garanto-te, escolham outro para usar lassinho, que coisa, hem...

Ela disse – é tradição meu filho – se é tradição ou não, me senti envergonhado dentro daquele traje, estava desesperado para que a cerimônia terminasse e nos dirigíssemos para os comes e bebes; a fome apertava e eu precisava aliviar a tensão. Era hora de...

Á mesa do restaurante me empanturro do bom e do melhor, e, depois choro... Sim, eu chorei no batizado do meu afilhado, como ele chorou aquando lhe deram a benção. Chorei porque o garçom me achou magro e não parava de me oferecer comida, como se eu fosse um mendigo, um esfomeado, eu falei para ele, alto e em bom som – que eu sou magro, mas tenho fibra, enquanto você é gordo e nem saboreia a comida. Ele ficou puto, nunca mais me serviu, mas àquela hora também já tinha feito a digestão, nada mais cabia no meu pequeno estomago de galinha. O Padre também andou por lá, eu não me esqueci dele, ainda que em determinado momento desta lembrança tenha decidido dar-lhe um papel secundário; ele - de barriga longa e queixo quebrado, vagueava como um sóbrio desnorteado em busca do melhor vinho da festa, não lhe chegou o que bebeu durante a missa, ainda tem o descaramento de se insinuar para uma bela garrafa de vinho tinto da cuba de meu avô.

- Ah, como ele bebeu, como ele comeu, como ele abusou naquele dia. Contudo, no fim, fui eu a ovelha negra da festa, pois chorei quando devia manter uma postura de adulto, mesmo que minha idade se coadune com isso. O ato de chorar não me envergonha, mas sim, a forma como estas festas são antecipadamente idealizadas e ridículas, se salva o sentimento de proteção a outro ser.

A ele, de seu nome Danny, dedico este texto, por quem nutro uma profunda amizade e espero poder futuramente ser mais do que um padrinho ausente.

Hoje vive em Paris com os meus tios, e acabou de perfazer 12 anos, falo com ele pela internet, ao mesmo tempo em que me lembro dos sussurros que eu lhe dava enquanto bebê; tenho a certeza que no fundo ele me escutou, e que esses sopros no coração nos aproximaram.

Abraços para ti meu querido amigo, jamais me esquecerei de ti.

Jonny

Jvcsilva
Enviado por Jvcsilva em 21/05/2010
Código do texto: T2271106
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