Prato Cheio
Em um tempo não muito distante...
A moça extasiada pela beleza natural do lugarejo, com o corpo salgado, pele morena e olhos refletindo o sol intenso, entrou no restaurante para dar vazão a todos os pecados. O ócio abre o apetite e a visão marinha alertava para os prazeres de um bom prato de frutos do mar.
Caminhou por entre as mesas e chegou ao balcão no canto do restaurante. O rapaz separava os talheres com os olhos parados no programa da televisão.
- Tem prato individual?
- Quê?
- Pra-to in-di-vi-du-al...
- Que é isso?
- Prato para uma pessoa.
- Ah! Tem sim...
O rapaz respondeu entregando cardápio e fazendo sinal para que a moça se acomodasse em uma mesa.
- Clara já te atente. Como é mesmo? Indi...
- Individual, de indivíduo...
- Só sei falar argentino...
- Argentino? Não, é português...
- Indi... Indi... Ah, deixa pra lá...
A moça sentou-se pensativa. Será que o conceito de indivíduo era muito abstrato ou a palavra não era popular? O rapaz sabia falar argentino...
Sentiu vontade de rir, mas foi interrompida por Clara.
- Já escolheu?
- Sim. O bobó de camarão. Prato in...
A moça interrompeu diante do olhar desatento de Clara e emendou:
- Prato para uma pessoa...
- Só tem o que está no cardápio.
- O bobó é uma refeição para três pessoas. Estou sozinha...
- Mas dá para comer. Onde comem três, come um... Vem bem servido...
A moça silenciou perplexa. Não havia argumentos para combater tal lógica. Levantou-se e saiu rapidamente, enquanto a televisão anunciava o filme da seção da tarde.
Caminhou sozinha até o trapiche e sentiu, no horizonte escaldante, sua solidão, talvez o significado de sua individualidade.
Restariam ainda indivíduos ou a palavra desconhecida traduzia apenas o conceito de uma percepção individual?
"Onde comem três, come um..." A moça perdeu a fome.