FLORIANÓPOLIS

As regras do sorteio eram claras: os consumidores que adquirissem produtos acima de cinqüenta reais concorreriam a uma viagem a Florianópolis com direito a acompanhante. Deveriam preencher os cupons, depositá-los nas urnas e, eventualmente sorteados, retirar o prêmio na Associação Comercial.

Cinco cupons. Quatro no nome da esposa e um no seu. Sabia do azar que o rondava em prêmios, concursos, eleições. Lembrava de uma vez em que preenchera perto de quinhentos cupons numa loja cuja premiação contemplaria os ganhadores com uma moto para o primeiro lugar e vale-compra para segundo, terceiro, quarto e quinto.

Acostumado aos maus presságios, ouviu desinteressadamente a telefonista comunicando do prêmio que deveria ser retirado na manhã de quinta-feira. Dormiu regularmente e, ao acordar, comentou com a esposa da ligação da noite anterior. Ligação ou sonho?

A esposa sintonizou na rádio, jogou água na chaleira e enquanto esperava o ponto ideal para acrescentar o café – o café deveria ser adicionado antes das primeiras borbulhas se firmarem – ouviu o locutor informando o nome do ganhador.

- Vamos para Florianópolis. Nós vamos para Florianópolis! Nós vamos.

O marido conversou com uma atendente, pediu dispensa do trabalho, fez as fotos de praxe. Falou ao chefe dele e ao da esposa: uma semana de férias conjuntas para gozar o prêmio. O filho mais velho tomaria conta da casa e a mais nova enviada para a casa do tio.

À noite, pegou o talão de cheques guardado ao fundo da gaveta do guarda-roupas parcelado em dezoito vezes numa dessas grandes redes de vendas de móveis, eletrônicos, eletrodomésticos, congêneres e impensáveis, fiscalizou as sete folhas usadas nos últimos dois anos e arriscou: entraria no cheque especial. Se nunca tinham deixado Presidente Prudente, aquela viagem deveria ser memorável! E por que não seria?

Pegou os mil e quinhentos reais do cheque especial, comprou alguns produtos, maiôs e calções (não deixaria que os olhassem como coitados de apenas uma roupa de banho), chapéu de palha, bronzeadores para a esposa e protetores para ele, três óculos escuros, algumas bermudas e camisetas havaianas, câmera fotográfica, guia turístico da famosa ilha de Santa Catarina. Listou restaurantes nos quais escolheria os pratos mais caros, os cinemas nos quais assistiria aos filmes com as pernas penduradas nas poltronas da frente, os teatros em que se esborracharia de chorar com as óperas.

Guardou o troco – perto de trezentos reais – no fundo falso da bolsa da mulher e, segunda-feira, filho em posse das chaves do carro e sogra emocionada com o tamanho do avião, flanaram cerca de três horas – entre viagem, escalas e conexões – e desceram em Florianópolis. Retiraram as malas da esteira, caminharam pelo aeroporto e estranharam a ausência de profissionais para recepcioná-los. O relógio marcava uma e meia.

- Vamos esperar até sete horas.

Passearam pelo aeroporto cerca de dez vezes, revisaram os lugares que visitariam, fizeram planos de poses para fotos, conferiram pela quinta vez a lista de lembrancinhas para amigos, parentes, colegas de trabalho e alguns conhecidos, secaram uma garrafa de café, duas de água e uma de suco de laranja, comeram pão de queijo e croissant.

Os filmes da televisão acabaram e os oradores conclamavam os fiéis a seguirem Jesus. O gerente da lanchonete 24 horas, que havia emprestado o controle remoto, sugeriu que visitassem a banca de revistas que acabara de abrir. Folhearam as revistas de fofocas, compraram uma revista política de viés esquerdista e duas de palavras cruzadas.

Quando voltaram, o gerente os convidou a irem aos fundos da lanchonete. Caminharam receosos e, minutos depois, apoiados no vidro de proteção, testemunharam o Sol estourando a escuridão e rompendo o ventre do mar.

Depois da longa noite, o marido telefonou para a associação comercial. A atendente passou o telefone para o chefe da seção, o chefe da seção transferiu a ligação para a assessora de relações públicas, a assessora de relações públicas entregou o problema ao presidente.

- Sou o ganhador da viagem para Floripa, disse o marido, piscando para a esposa e reforçando a voz no nome informal da capital. Chegamos à uma hora da manhã, prosseguiu, e até agora ninguém apareceu para nos buscar. Queríamos o telefone ou o endereço do hotel e dos nossos guias. Descansar um pouco e depois aproveitar o dia.

O gerente riu.

- Guias? Hotéis? Garantimos a viagem. Viajar, o senhor já viajou.

A linha caída aterrorizava o marido que, silencioso, voltou o fone ao gancho.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 14 de maio de 2010.