Amantes

Sentia a maquiagem como uma máscara aveludada, que a protegia dos olhares alheios. Como se pudesse não ser reconhecida atrás dos tons azuis e rubros, que lhe cobriam boca olhos e faces.

Um pouco de medo e tensão acentuavam a excitação e o desejo de encontrar o amante.

“Amante!” Pensar na palavra provocava-lhe um arrepio na espinha e um pouco de sentimento de culpa, por estar traindo o marido, que não amava, mas por quem nutria uma certa simpatia e de quem não pretendia separar-se, em hipótese alguma.

Lembrava-se do tempo de namoro, do dia em que apresentara Júlio aos seus pais. Ele era rico e academicamente bem formado. Ela, por sua vez, conseguira a duras penas concluir o curso de magistério. Mesmo assim, era dentre suas irmãs a que chegara mais longe nos estudos.

A cada passo, uma carga de pensamentos faziam-na perceber os mais diversos sentimentos. Passava da culpa ao prazer tão rapidamente quanto respirava, todas as vezes em que imaginava onde essa história poderia chegar.

Depois de quatro lentos anos casada com Júlio, conhecera Márcio, um dos vendedores da fábrica de sapatos onde ela trabalhava como desenhista. Ele era divertido, inteligente, espirituoso e, até, um tanto malicioso nas brincadeiras e comentários. Um perfil que atraía as pessoas. Tinha muitos amigos de ocasião e gracejava para todas as mulheres ao seu alcance, sem se preocupar, sequer, em disfarçar os ataques.

Júlio também era inteligente e fisicamente mais interessante do que o outro, mas na concepção de Flávia, não era atraente. Valorizava mais o sobrenome e a condição social interessante, que o casamento proporcionava, do que a companhia do cônjuge, propriamente.

Flávia conhecia a esposa de Márcio, Joana. Desde que se conheceram, deram-se bem. Parecia que tinham muitas afinidades, muitos gostos em comum.

Os maridos também se conheciam e tinham uma relação que beirava a amizade. Só não tinham ficado mais próximos, porque não houvera tempo para isso.

Chegou ao local combinado e o coração batia mais depressa. Olhava para os lados, mas seus olhos não localizavam Márcio. Buscou o pequeno relógio dourado em seu pulso, presente da sogra, que não perdeu a oportunidade de lançar uma crítica aos costumeiros atrasos da nora em seus compromissos, quando entregou o regalo.

Os minutos passavam vagarosamente. Cena rodando em “slow motion”. Ansiedade. Ela podia ouvir seus próprios batimentos cardíacos.

“Será que ele não vem? Será que se arrependeu? Será que alguém descobriu? Mas descobriu o quê? Nós ainda nem fizemos nada.”

A mão grande e pesada tocou suavemente o ombro da moça. Ela se virou. Sorriu. Seu lábio inferior tremia nervosamente, mas mesmo assim o sorriso permanecia, insistentemente, mudo.

“Oi. Demorei muito?”

A voz grave, acompanhada de um olhar firme e convidativo a deixavam mais excitada.

“Não muito, Márcio. Mas eu estava preocupada, que não viesse.”

Enquanto falava, por conta da respiração alterada, ela denunciava seu estado de ansiedade.

“Eu não perderia esse encontro. Nunca. Faz tempo que está pra acontecer. Foi minha mulher, Joana, que telefonou e me pediu pra passar em uma lojinha aqui perto e comprar uma correntinha de ouro, pra ela pendurar no pescoço com uma medalha de coração, que ela tem já faz tempo. Ela tem cada uma! Nunca usou a bendita medalha, agora resolveu querer.”

“Se alguém passar, pode pensar alguma coisa diferente. Não acha?” Flávia parecia preocupada.

“Qual o problema se alguém nos vir juntos, aqui? Nós estamos na rua conversando. Não fizemos nada demais... ainda.” Um sorriso malicioso acompanhou a última afirmação.

“Tá. Mas vamos sair daqui. Eu reservei um quarto pra nós, num hotelzinho aqui perto.”

Enquanto conversavam, eles se entreolhavam, porém, sem se tocar. A traição que ainda não se concretizara de fato, parecia desde a sua concepção mental, fazer com que se sentissem culpados. Esse sentimento, por si, era suficiente para confirmar a intenção de algo que suas consciências reputavam errado.

O errado, no entanto, parece quase sempre muito excitante.

A próxima parada do casal foi em um hotelzinho simples, em uma rua discreta, ali mesmo no bairro onde ficava a empresa na qual trabalhavam. O quarto número treze estava reservado, conforme ela dissera anteriormente.

Nem uma palavra mais. Despiram-se, entre carícias e beijos quase violentos. Não havia amor naquele quarto. Apenas excitação sexual, instintos, ações puramente animalescas.

O corpo da mulher, muito alvo e macio contrastava com o biótipo pesado, quase rústico do amante.

Passaram-se algumas horas, antes que se despedissem e seguissem seus caminhos, cada um ao encontro de seu cônjuge.

Pela cabeça de Flávia, mil idéias, algumas inclusive inviabilíssimas e despropositadas. Ela tentava imaginar, como olharia para o marido, a partir daquele momento. Nunca o traíra antes. É bem verdade que nunca fora apaixonada por Júlio, mas nunca imaginara-se com outra pessoa.

Ela tinha um objetivo, no entanto. E não pretendia voltar atrás, mesmo porque tinha dado o primeiro passo e algo muito forte empurrava-a para frente. Agora, havia um mundo de coisas mais importantes do que um sobrenome ou uma situação sócio-econômica confortável.

Para Márcio, porém, estava tudo na mais perfeita ordem. Não incomodava sua consciência, por ter traído a esposa. A formação machista, herança que recebera do pai, que por sua vez trouxera do pai dele, garantia sua postura de homem que trai, mas não abandona a família, por nada nem por ninguém.

Na manhã seguinte, os amantes cumprimentaram-se cordialmente. Os colegas de trabalho de ambos sequer imaginavam o que ocorrera entre os dois.

Algo estranho, no entanto aconteceu: ao passar por Flávia em um corredor, quando não havia ninguém, ele sorriu para ela e deu uma piscadela, esperando, ao menos, um discreto sorriso em resposta, que não aconteceu.

Semblante impassível, como uma esfinge, ela passou pelo rapaz. Um observador externo teria até percebido um tanto de desprezo na atitude da moça.

Ele estranhou. Sentiu-se incomodado. O que estaria acontecendo?

“acho que ela está com medo.” Chegou a pensar.

O fato é que isso continuou acontecendo durante todo o expediente. Até durante o almoço, quando alguns colegas, dentre eles os dois amantes, sentavam-se juntos à mesa, ela aguardou que todos se acomodassem e quando notou que o lugar que lhe restara seria ao lado de Márcio, pediu a uma outra garota, que trocasse de cadeira com ela.

Para ele, instalara-se uma tortura psicológica que o incomodava a ponto de não conseguir trabalhar direito, pelo resto do dia.

“Será que ela não gostou de mim?

O marido descobriu?

O chefe descobriu e vai me demitir?

Ela está a fim de contar pra minha mulher?

Meu Deus! O que está acontecendo?”

Assim permaneceu a cabeça de Márcio, até, que do computador sobre sua mesa, veio o aviso sonoro, indicando que havia uma mensagem em sua caixa de correio eletrônico.

Foi ao teclado e abriu. Era dela. Entre a ansiedade e a apreensão, ele leu o recado:

“Quero conversar com você. Espero hoje, no mesmo quarto de ontem. Depois do expediente.”

Um frio percorreu-lhe a espinha. Estaria ela apenas disfarçando? Afastando-se dele e tratando-o com desdém, para que as outras pessoas de nada desconfiassem?

“Mulheres são assim mesmo. Meio malucas. Eu nem podia imaginar que ela poderia sair comigo. Nunca olhou pra homem nenhum. Nunca ligou muito para o marido, mas também não dava bola pra outro. De repente a gente estava naquele quarto de hotel barato. Nem vou me preocupar. Mulher é assim.”

Na cabeça dele, estava tudo resolvido. Era só um capricho e um pouco de medo dela aquele comportamento estranho.

Mas, para não ter dores de cabeça, decidiu que iria encontrá-la, talvez uma hora de sexo a mais e terminaria tudo. Com cuidado para não magoar, mas com firmeza.

Dezoito horas. Márcio nem viu Flávia saindo. Correu para o ponto de encontro. Na portaria do hotel o recado passado por um senhor sentado atrás de um balcão de madeira, velho e sujo:

“É pra o senhor subir no quarto treze. O senhor já sabe, né?”

Ele nem agradeceu. Subiu correndo. A porta estava só encostada. Levou a mão à maçaneta e abriu.

Na beirada da cama, sentadas, abraçadas e beijando-se apaixonadamente estavam Flávia e Joana.

O rapaz empalideceu. Encostou-se no batente da porta, para não cair.

“Mas... ahn... Joana... não to entendendo...”

Quem falou foi Joana, sua esposa:

“Calma, Márcio. Eu explico. A gente se apaixonou naquele dia mesmo, quando nos conhecemos. Somos parecidas demais. Um dia nos encontramos na cidade e ficamos conversando. Ela me contava tudo o que você fazia no trabalho. Você nunca me amou. Ficava cantando todas as mulheres na firma, na rua. Quer saber, eu já tinha percebido, que até quando estava comigo, você ficava piscando para as garotas na rua. Enfim, nos armamos essa sua saída com a Flávia, para que pudéssemos ter essas fotos.”.

Esticou a mão, mostrando fotografias tiradas do último encontro que havia ocorrido entre eles.

“Agora, vou me separar de você. Nós vamos ficar juntas. As fotos eu vou usar para pedir a separação. Flávia também não suporta mais o marido. Na verdade, ela sempre gostou de mulheres. Nós nos amamos.”

A outra não dizia nada. Ouvia silenciosamente, enquanto segurava-se ao braço da parceira, como quem segura uma corda salvadora, para evitar a queda do alto de um precipício.

A mulher de Márcio continuou:

“Enquanto você estava comprando a correntinha, ontem, eu cheguei antes, aqui no quarto, para me esconder no banheiro e tirar as fotos... e a medalha com esse cordão é um presente pra marcar o início da oficialização de nosso namoro, meu e da Flá.”

Aqui, ela concluiu, lançando um olhar e um sorriso para a amante.

Silêncio.

Márcio atravessou o quarto com passos lentos. Pés se arrastando. Catatônico. Olhar fixo no vazio.

Chegou até a janela, abriu-a e se atirou. O corpo pesado e grande caiu no asfalto fazendo um barulho estranho. Talvez ele nem tivesse morrido, pois estavam somente no segundo andar, se não tivesse caído na frente de um ônibus, que não teve chance de frear a tempo, encontrando-o fatalmente no asfalto.

Joana e Flávia foram viver juntas. Júlio mudou muito. Mudou-se para Paris, mudou de emprego, mudou de sexo. Agora faz shows em uma casa noturna e casou-se com um empresário francês.