ERA APENAS UM SER PATÉTICO






Havia um Ser. Havia uma canção no ar... Não era o bolero de Ravel, era L’indifferént com Jessye Norman. O Ser não era nenhuma Capitu de olhos de ressaca, oblíquos e dissimulados procurando saída  para os seus sonhos. Nem tampouco nenhum Werther querendo entender o coração humano nem a queixar-se dos homens que sofreriam menos se não se aplicassem tanto a invocar os males idos e vividos, em vez de esforçar-se para tornar suportável o presente .

Era apenas um Ser  patético, que na sua quase ignorância nas coisas do amor e na sua  lerdeza  de Quasímodo,    agarrava-se  a um punhado de palavras escritas  procurando entender o significado delas, pois soavam  destoantes das que já lhes foram ditas. Aos ouvidos do Ser, todas  as palavras  machucavam, mas apenas uma mais que as outras  e que tanto lhe  confundia: louco! Louco! Louco! Por que louco! Por ter amor dentro de si? Por não enxergar a maldade? Por confiar nas pessoas? Por ser tido como bonzinho?  Para o Ser, quão difícil estava sendo desviar o  olhar daquelas palavras, mas ele sentia que precisava se desligar delas, estavam carregadas de lembranças outras e  exigiam dele  que fossem sufocados sonhos e bem querer...

Ao seu alcance um Caneletto não aberto, não era de vinho que precisava o Ser, ele precisava embriagar-se com aquelas palavras, elas precisavam embotar o seu cérebro, queimar os seus neurônios. 

 
Já no seu quarto o Ser deu-se conta que a madrugada já  se fora e logo mais a cotovia canta. Luzes apagadas,  cortinas cerradas, na escuridão do quarto tropeçou em algo, segurou um palavrão e jogou-se por sobre a cama, braços cruzados sob a cabeça virada para um lado, atento ao irritante tic tac do relógio, que foi arremessado   contra a parede. Reinando o silêncio, os olhos foram fechados esperando o dia raiar, afinal, um outro dia surgiria e um outro dia é sempre um outro dia...


E o outro dia surgiu , tão calmo e tão sereno, que ao Ser só coube - observando o quarto em desordem, indagar: vivi isto? Se vivi, esqueci .


E com passos firmes e decididos, caminhou o Ser em direção à porta, destrancando-a e saindo  para oferecer o seu primeiro sorriso e desejar um bom dia a quem primeiro surgisse à sua frente.

E deu bom dia e sorriu para o pequeno jornaleiro.


 
Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 13/05/2010
Reeditado em 13/05/2010
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