SAI QUE É SUA, TAFFAREL

Dia 7 de julho de 1998, 15 horas. Em Marselha, França, a seleção brasileira está a uma hora de disputar a semifinal da Copa do Mundo, contra a Holanda. As emissoras de televisão já transmitem informações ao vivo do estádio Vèlodrome desde a manhã. Enquanto isso, eu estou sentado no Shopping Estação, em Curitiba, no octogésimo nono – aproximadamente, vai – copo de chope.

Fui para lá cedo, ainda pela manhã, para escolher uma boa mesa na praça de alimentação, com ângulo favorável e sem possibilidade de intrusos entre a tela e meus olhos. Namorava na época, então, como boa parte daqueles que estão contagiados pelos primeiros acordes do amor, levei-a junto. O que, hoje, com mais experiência, procuro evitar. Afinal, desculpem-me meninas, homem na torcida com os nervos à flor da pele, partida tensa e difícil, e namorada querendo te consolar falando que “é só mais um jogo” definitivamente não combinam.

Escolhida a mesa, almoçamos e comecei a tomar aquele chope gelado que a ocasião pedia, só para dar uma relaxada. Encontrei mais um amigo, que se juntou a nós – tanto na mesa quanto no nervosismo. Com o passar do tempo, o shopping encheu, não, melhor, abarrotou de gente. Era “Brasil!” para cá, “Pentacampeão”, para lá; todos numa só voz. Era a única forma – aliada à cerveja – de aliviar um pouco a tenção. Enfim, às 16 horas (horário de Brasília), o árbitro apita o início da partida.

Foram inúmeras chances seguidas para os dois lados, mais em ritmo de rádio que de tevê. Bergkamp chuta de longe tentando surpreender Taffarel. Na sequência, Ronaldo, ainda Ronaldinho, fininho, toca para Leonardo, que devolve de prima para o ex-gordo que dá um tapa e desliza em velocidade à linha de fundo, batendo cruzado... o zagueiro tira de carrinho. Volta a bola para a Holanda que encontra Zenden, na ponta-esquerda, que cruza na cabeça de Kluivert... Uh! Mas o Brasil não se abala e Rivaldo, à esquerda da intermediária, lança Bebeto em profundidade, mas o atacante não alcança a gorduchinha, que cruza a área até sair pela linha de fundo. E foi um tal de Zenden dum lado, Rivaldo e Ronaldo de outro, Kluivert numa área, Bebeto na outra que só um coração bem tratado resistiria. E tudo isso ainda no primeiro tempo.

No intervalo, eu estava tão nervoso que esqueci uma coisa básica: ir ao banheiro. Eu já devia estar bebendo há umas três horas seguidas, mas nada me tiraria de frente daquela televisão naquele momento. E bem que fiz, pois, aos 40 segundos do segundo tempo, Rivaldo, sempre ele – um dos maiores jogadores brasileiros, mas que raramente é lembrado – enfiou na medida para “Rrrrrrronaldiiiiiiiiiiinho!”. Que alegria, que felicidade. Da onde eu estava sentado pude ver o gol e a multidão que lotava o Estação jogar seus copos de chope, com tudo o que tinham dentro, aos ares.

Rapaziada, mas os Holandeses vieram para cima. E foi escanteio atrás de escanteio e “Taffareeeeel” se virando como podia. Então, a bola caiu novamente nas graças de Rivaldo, e ele, de novo, puxou a contra-ataque; e, de novo, dominou-a com precisão; e, de novo, conduziu com maestria; e, de novo, deixou Ronaldo na cara do gol. O careca, então, dividiu com o goleiro, caiu e a bola seguiu, lenta, dócil, matreira e displicente sua trajetória... para fora, passando rente à trave. Engasguei com um soluço por conta desse lance – e de mais um gole de chope, dos quais eu já perdera a conta fazia tempo.

Depois, Denílson pedalou (Robinho ainda era projeto) e cruzou para Rivaldo que, num carrinho, errou a bola, que ficou presa sobre suas pernas. Ele ainda conseguiu desvencilhá-la e chutar, mas o goleiro holandês já crescia sobre o 10 do Brasil. Quase no fim, Kluivert engrossou uma última vez, em seu penúltimo lance no temo regulamentar, isolando a redonda por sobre o gol de Taffarel; mas, minutos depois, fuzilou-nos com uma cabeçada certeira, aos 42 do segundo tempo. Empate, 1 x 1. Uma cabeçada a instantes do fim. Uma cabeçada que parecia um mau-presságio. A cabeçada que nos levaria a até então impensada prorrogação.

Eu já estava que não me aguentava de tanta vontade de ir ao banheiro a essa altura. Sabe aquela vontade que quase te mata? Que te faz pensar em fazer ali mesmo e que se lasque todo mundo em volta? Mas me controlei e fui, com passos curtos e contidos para não fazer bobagem no meio do caminho, aos azulejos. Porém, chegando lá, fila. Muita fila. Desisti e resolvi ser forte. O negócio era autocontrole e parti para ensinamentos de ioga, meditação e outras técnicas, as quais jamais em toda a minha vida pratiquei. O importante não é saber usá-las, mas acreditar, da mesma forma como confiava no escrete canarinho, que seria possível segurar. Invoquei Bruce Lee, divindades hindus, tudo o que me vinha à cabeça para manter a torrente líquida que insistia em esvair-se de mim controlada.

Na meia hora que se seguiu, fui um bravo. Praticamente não me lembro de nada em relação ao jogo, pois não conseguia pensar em outra coisa que não na minha vontade de ir ao banheiro. Só sei que, ao rever imagens do jogo, tempos depois, vi um Ronaldo forte, explosivo, habilidoso, talentoso, disputando palmo a palmo com zagueiros (e ganhando), chutando a gol... que saudade! Contudo, não foi suficiente e vieram os pênaltis.

Neste momento, eu não conseguia mais segurar. Lutei até o limite de minhas forças, mas já atingira um ponto sobre-humano. Precisava ir ao banheiro imediatamente, a qualquer custo. E que custo! Decisão de pênaltis entre Brasil e Holanda em uma semifinal de Copa. Então, corre, Beto. E foi o que fiz. Fui como um raio ao banheiro e comecei uma campanha na fila, a fim de acelerar o pessoal que insistia em derramar todo o volume do Mar Mediterrâneo canos abaixo. “Vamos lá, moçada, rápido aí, os pênaltis vão começar. Agiliza!” E lá de dentro vinham as respostas: “A gente tá indo o mais rápido possível”. E era verdade. Querendo ou não, naquele momento, mesmo sendo um ‘salve-se quem puder’, havia uma camaradagem ali presente. Afinal, estávamos todos no mesmo barco. Éramos todos brasileiros – apertados – em busca do mesmo objetivo.

Quando consegui, finalmente, entrar para fazer aquela necessidade que já tinha suplantado todas as definições de ‘básica’ que eu conheço, ouvi pelas caixas de som internas do banheiro (shopping ‘chique’ são outros quinhentos...) o Galvão avisando: “Vamos para as penalidades máximas”. DE-SES-PE-RO! Acelerei o processo o máximo que me foi possível, dei aquela chacoalhada padrão, lavei as mãos, enxuguei na própria calça (o papel havia acabado) e voei para a minha mesa. Cheguei a tempo de ver o Ronaldinho convertendo o primeiro.

Na sequência brasileira, Rivaldo e Emerson marcaram. Então, veio o holandês Cocu, e lá foi o Galvão narrar: “Vai partir Cocu, na perna esquerda, ele e... Tafareeeeeeeeeel! Sai, sai, sai, sai que é suuuua Taffarel!” Até me arrepio ao lembrar. Uma das maiores alegrias que já tive. Dunga, logo em seguida, fez o dele, socando o ar com raiva durante a comemoração, à la Dunga. Grande capitão! Para finalizar, vamos novamente à narração, ao vivo, presente, que certamente conta mais (independente de gosto) do que as minhas próprias palavras sobre o pênalti derradeiro, cobrado pelo holandês Ronald de Boer:

“Se Taffarel pegar, se bater na trave, se for para fora, acabou... é Brasil na final! Ronald de Boer, pé direito contra Taffarel... Partiu... Taffareeeeeeeeeeeeeeel! Sai, sai, sai, sai que é suuuuua, Taffaréeel! Brasil na final, de novo!” Realmente, inesquecível.

FIM

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