Lerda, eu?
Foi assim que a história começou... Não, não vou contar do começo, vou não. Vou começar logo depois do começo e colocar o começo no fim. Ou quase.
 
Preciso colocá-la no papel. A história. Já a contei tantas vezes, oralmente, que definitivamente decidi: tenho que registrá-la. Sabem como é: quem conta um conto aumenta um ponto. De cada vez que conta. Não quero correr o risco dela deixar de ser verdadeira e se transformar em uma lenda. Uma daquelas, familiares, que um dia meus sobrinhos irão contar para seus filhos e netos: “Sabe a Merô? Você se lembra dela? Pois um dia a Merô...
 
“Certa noite Merô ficou no computador, ou lendo um livro, ela já nem sabia mais quando contou. Pois é, ela ficou acordada fazendo nem sei o que até as três horas da manhã. Mas as seis ela já estava de pé. Sua sobrinha ia viajar para Campinas e ela emprestou o carro para que um motorista a levasse. Depois de muito chamego, beijos e abraços, a sobrinha se foi e ela ficou. Estava com muito sono, mas não podia voltar a dormir porque tinha aula de Inglês, que ela fingia estudar. Então voltou para o computador ou foi ler, ela não se lembrava mais. Faltando meia hora para a aula, ela que já estava pronta, abriu a caixa de... (aqui, pausa – o que ela fez será, como foi prometido, contado no final. Ou quase.)

Merô foi até a garagem de sua casa e pegou o carro que sua irmã lhe emprestara: Que estava duro, pesado, desobediente. Não sabe como, mas aos trancos e barrancos conseguiu chegar onde tinha que ir. Deus do Céu, que sono! Repetia ela sem parar balançando a cabeça como se assim pudesse afastá-lo. E ali, no lugar onde tinha que ir, as coisas estavam correndo mais ou menos normalmente – era o que pensava – apesar do sono. Parecia... até que a teacherfriend disse: MO, o que está acontecendo com você?
       Nada, eu só estou com sono.    
       E ela já disse isso com voz de bêbada, a boca mole, as palavras saindo arrastadas. E continuou: Muito sono. Muito... ela repetia. Vou para casa dormir. E é óbvio que sua friendteacher se recusou a deixá-la sair dirigindo, embora ela teimasse. Disse que a levaria, mas se recusou e ligou para o gerente de sua Fábrica de Pães e pediu-lhe que arranjasse um jeito de ir buscá-la. Ele foi, voando na garupa de uma moto, mas quando lá chegou a sua professora/amiga já havia pedido socorro ao marido, a diarista e a dois alunos que chegavam para aula e colocado-a dentro do seu próprio carro. E assim foi a comitiva de dois carros e uma moto levá-la para o hospital onde conseguiram até que fosse atendida prioritariamente mesmo ela resmungando: Que horror! Me trazerem para o hospital só porque estou com sono e ainda por cima passando na frente de todo mundo! A amiga professora deixando-a ali aos cuidados da equipe do PS saiu em disparada e entrou na consultório da irmã terapeuta e esmurrando a porta ativou o círculo familiar que logo a seguir estava todo em volta do leito de morte da irmã. E ali ela abria um olho e via um e via outro e se recusava a fechar os dois juntos porque estava achando profundamente ridícula a situação. Seu médico foi chamado e a beliscou forte para acordá-la e puseram soro em suas veias, acabava um e começava outro até que ela desistiu e dormiu. Foi acordada já no fim da tarde para ir para casa e nem se lembrava como chegou lá, só lembrava que foi para sua cama e dormiu... dormiu...até a manhã seguinte quando acordou.
 
E aí, quando acordou, ela levantou-se normalmente, tomou banho, tomou café, trocou de roupa e abriu o seu armário e tirou dali a caixa de remédios e a primeira caixa que pegou... não era dela. Aterrada viu então o que tinha feito: no dia anterior ao anterior, tinha feito uma viagem rápida para acompanhar um enterro em Belo Horizonte e esvaziara a bolsa. E dali tirara o remédio do sobrinho que guardava em sua bolsa. E se lembrou que o sobrinho estava se recusando a tomar um quarto do maldito comprimidinho porque mal punha na boca já caía desmaiado.