FILHA EM BOAS MÃOS
Bezerra não agüentava mais os namorados da filha. Um havia sido preso por assalto à mão armada. Outro batera no carro da polícia a mais de cento e cinqüenta por hora num desses rachas da madrugada. Um terceiro não gostava de estudar e o seguinte passava longe da palavra trabalho. Um quinto mantinha a péssima tradição de fuga ao banho diário, da higiene bucal e dos bons modos à mesa. O sexto se apresentaria naquela noite.
- Mais um, disse o pai.
A mãe silenciava sobre as opções e apoiava o relacionamento descompromissado da filha, mas dava razão ao marido: escolher melhor os marmanjos com quem se envolvia. De ladrão a cascão, de vagabundo a desinteressado. O que mais faltava trazer para casa?
Às vinte horas e trinta e oito minutos o novo namorado tocou na campainha do apartamento. O pai ajeitou o colarinho e abriu a porta, surpreendendo-se com o rapaz de barba feita, cabelos penteados, segurando uma caixa de chocolates e um pacote de Café São Braz, camisa de mangas longas por dentro das calças, cinto e sapatos marrons.
Pegou a caixa de chocolates e o café.
- Graças a Deus, disse o pai entrando na cozinha, sorrisos largos, dessa vez o rapaz certo.
Um homem limpo, trabalhador – não precisava ser nem estudioso nem estudado, como também ele não era –, honesto e respeitador. Acima de tudo, respeitador.
Apressou-se em arrumar a mesa, sentou-se na poltrona de estimação, ligou a televisão. O rapaz abandonou a revista sobre a mesinha de centro e concentrou-se no telejornal que passava os dados inflacionários do último trimestre, manutenção da taxa de desemprego e oportunidades de trabalho agrícola.
- E é isso. Não é? Principiou uma tentativa de diálogo.
- O senhor tem vários troféus de baralho. Gosta de cartas?
O namoradinho tocara no ponto fraco de Bezerra que falou de estratégias, de viagens, de concursos interestaduais, de prêmios em dinheiro em Curitiba e João Pessoa. E as praias de João Pessoa? O namoradinho disse que nunca viajara a João Pessoa.
- Então não sabe o que está perdendo. Gosta de carnaval? Lá tem um bloco chamado Muriçocas do Miramar e outro é Donzelas de Tambaú. Donzelas? Não. Bezerra corrigiu-se, o correto é Virgens de Tambaú.
A filha sentou-se ao lado do namorado. O pai levantou-se satisfeito, entrou novamente na cozinha.
À mesa, os assuntos variavam. As ponderações do rapaz pareciam sempre acertadas. Via-se, pensava o pai estranhamente sorridente, que era culto, viajado, paciente. A filha jamais encontraria um pretendente como aquele.
- Então, gostas de viajar?
- Sim, senhor, respondeu. Gosto de viajar sempre com a finalidade de avaliar as liberdades de gênero proporcionadas nos países.
- Avaliar? Claro. Avaliar. Percebe-se que o senhor é um cientista, um estudioso. Para onde já viajou?
- Primeiro às povoações uruguaias próximas ao Rio Grande. Não gostei muito. Mas, depois fui à Holanda e tive análises empíricas e pragmáticas inesquecíveis, aprofundadas na Tailândia. Que país maravilhoso é a Tailândia!
O pai piscou para a mãe. Quando imaginariam jantar com alguém que viajara à Holanda e à Tailândia?
- Tailândia é um país ao qual volto, pelo menos, uma vez por ano, continuou o rapaz, piscando para a namorada.
- E o que você gosta de assistir? Filmes de luta, de guerra, de sangue? A mãe falava delicadamente.
- Prefiro alguns filmes atuais. Detesto lutas, guerras e sangue. Os últimos aos quais assisti e dos quais gostei bastante são os da Gretchen e os da Rita Cadilac.
A mãe entrou na cozinha para pegar a sobremesa e o pai meteu-se atrás dela. Era um rapaz de virtude que reconhecia o passado e valorizava artistas nacionais.
A sobremesa acabou, a toalha foi retirada e o novo namorado solicitou permissão para dar uma volta. Entregaria a menina antes da meia-noite.
- Por que não? Suspirou o pai. Levar um disco para ouvir no carro?
- Já temos alguns. Prefiro ouvir repetidamente “je t’aime moi non plus”.
Um homem que, além de viajado, falava francês. Aquela língua só poderia ser francês, pensava o pai, imaginando na satisfação em narrar detalhadamente o jantar aos amigos da firma.
- E se eventualmente cansarmos de ouvir música, continuou o namorado, posso colocar um filme. “Calígula” é o meu favorito.
Da janela do quinto andar, o pai acenava para o casal cujo automóvel arriscava-se sob as folhas úmidas.
- Agora, concluiu o pai, alegrando a esposa com a sintonização no canal das telenovelas, nossa filha está em boas mãos.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!Estilo, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 7 de maio de 2010.