O Cara
O cara era uma espécie de ídolo da garotada que vivia entre o crime e a miséria naquele confim do mundo. Ele era mesmo “O cara”, na gíria que usam esses meninos.
Ela, representava a autoridade na escola que ali insistia em funcionar. E gostava mesmo desse negócio de poder. Já, em tempos anteriores, essa escola tinha sido demolida pelos moradores, não sei bem porquê. Em seus escombros, passou a funcionar uma quadra improvisada para os alunos fazerem atividades ao ar livre e o prédio novo ficava mais atrás.
O embate aconteceu lá pelo mês de maio, junho talvez. Tempos de preparar a festa junina da escola. Foi o pivô do impasse uma professora da segunda série, já que nestes tempos não se falava muito em ciclos.
Como já contei, era chegada a hora de preparar a festa junina. Essa era uma das poucas alternativas emancipatórias ao triste cotidiano, tanto de alunos como de professoras. Dos primeiros porque lhes havia pouco espaço para sonhar com festas, músicas, fantasias numa realidade onde o perigo mora, mais que ao lado, mora junto. Já para os segundos, a opressão tinha nome e função: diretora. E uma festa é sempre um espaço mais leve.
Como acontece freqüentemente em situações adversas, tanto alunos como professoras encontravam maneiras de romper com o que estava posto.
Os alunos, que eram meninos dessa comunidade, lutavam criando um mundo mágico, onde a fantasia vinha das quadrilhas juninas. Eles formavam um grupo que era campeão em todo o estado.
As professoras formaram o que raramente professores formam, um grupo muito unido e por isso, muito forte. Não se deram por vencidas nem quando foram proibidas pela dita cuja, de se encontrar na escola antes do horário da entrada; passaram a se encontrar fora da escola neste mesmo horário, no portão, aguardando o sinal para entrar.
O tal cara era o “marcador” da quadrilha, tão cara para as crianças. Generoso, apesar da suposta ignorância, aceitou “marcar” também a quadrilha da escola. Tirou tempo de sua vida para estar ali, dividindo e multiplicando seu verdadeiro talento. Era mesmo bom no negócio, ninguém ousava negar. Foi “amigo da escola” quando isso nem sonhava entrar na pauta do Fantástico.
Passadas umas quatro semanas, os ensaios estavam indo muito bem. Era ele fazendo a marcação e a tal professora da segunda série, na coordenação cultural do evento. Faziam uma dupla quase perfeita, respeitavam-se e admirava-se mutuamente.
Um dia ele chegou um pouco mais cedo, precisava falar com a professora sobre uns assuntos que não me lembro agora, até porque tal conversa não aconteceu. É que ele encontrou em seu caminho a diretora (ditadora? Tirana?) e em seu linguajar popular ousou:
_ Aquela “mulhé” taí? Preciso “falá” “cum” ela.
_ Aquela mulher não!! A professora, que ela não te deu liberdade de falar assim com ela!
_ Mas, mas, mas...
_ Nem mas, nem meio mas, respeito é bom e precisa ser usado. E tem mais, já chega de ficar entrando aqui a qualquer hora atrapalhando as aulas. Pode encerrar esses ensaios que a professora já aprendeu!
O ídolo da garotada era agora, não mais que um ignorante, sem eira nem beira, descartável e sem valor. Pelo menos nos olhos meio cegos, de uma diretora que desconhece seu papel.
Mas ele não foi derrotado não, sabe por quê? Tanto aquela Mulher, ou mulhé, que tal palavra nem chega a ser tão ruim assim, a professora da segunda série e suas colegas, como os alunos, resistiram, continuaram a receber suas valiosas instruções pelo aramado da cerca, onde ele ainda vinha todo fim de tarde ajudar nos ensaios, mesmo proibido de entrar. “Amigo ‘oculto’ da escola”.
Ele era o cara.