A criança é quem paga (para minhas filhas)




                                                       Guardo com todo carinho quatro crônicas do magistral Artur da Távola. Numa delas, ele se desnuda e, fazendo isso, com aquela sua pureza de pessoa, acabou por me descrever, como se fosse um vidente.
                                                      Era um mago da sensibilidade e constantemente acertava, quando procurava entrever a alma humana. Tive a feliz oportunidade de falar com ele sobre nossa identificação e ele me confidenciou que esta crônica a que me refiro era a preferida dele. A crônica chama-se “Ato Leigo de Contrição”. Não posso deixar de transcrever as antológicas primeiras oito frases: “Meu talento é defesa. Minha inteligência é acaso. Não sou criador, sintetizo. Minha bondade é culpa. Meu bom senso é medo. Não sei, sugo. Meu equilíbrio tem as deformações do que é normal. Minha lucidez nasceu da doença.”  
                                                     Fico arrepiado ao lê-lo, novamente. Esta é uma boa introdução para levar o leitor a outra descoberta do Távola, que, na época, menos inexperiente não percebi a profundidade de outro texto seu: “O Duro Preço de Meu Tempo”, quando constata que é a criança que paga a conta dos erros, desacertos e loucuras dos pais.
                                                     Conclui, felizmente, que a criança é mais forte e a tudo resiste. A criança caminha e prossegue apesar do adulto. Deixando de lado as felizes exceções- que bom que existam - , estamos assistindo no nosso tempo o despreparo dos adultos para cuidarem de suas crianças. E, para falar a verdade, nos séculos passados também. A psicologia de há muito tempo vem observando que o lar pode se transformar em local dos mais perigosos se os adultos forem imaturos.
                                                      O nosso sensitivo Távola já dizia: “ o pai é nervoso, tenso e sobrecarregado? É a criança quem paga. Sua mulher uma jararaca? É a criança quem vai pagar. Vocês brigaram, mas o desamor os afasta embora vivam juntos? Ela percebe, sabe, sente e pagará. Você é bacana, fazedor, desbravador, não tem tempo para nada? Rejubile-se: é seu filho quem vai pagar. Violento? Banana? Potro selvagem? Encucado? Posso garantir-lhe que é a criança quem vai pagar. Casou-se sem amor? Foi um erro, engano, paixão brutal e passageira, vontade apenas de botar um vestido e viver a fantasia arquetípica de ritos imemoriais? Não há problema, princesa: quem vai pagar é a criança.”
                                                    Como foi bom encontrar essas verdadeiras jóias de observação. Penso que um pai ou uma mãe amadurecidos pela vida poderiam muito bem deixar para seus filhos uma confissão como esta e, no mínimo, pedirem desculpas sinceras! Sempre intuí estas verdades, como também pude vislumbrar como a criança é forte e consegue superar essas adversidades. Superei, em parte, as minhas. Porém, vi isso mais claramente nas minhas adoráveis filhas.
                                                     O Távola não falou dos milhares de pais, às vezes o pai, outras, a mãe, com seus transtornos mentais, nos mais variados graus, os “perturbadinhos” da vida. Estava se referindo a essa “normose” do nosso tempo. O que já é um problemão.
                                                      Dedico esta crônica, porque chegada a hora, especialmente às minhas filhas-heroínas, como sempre as denominei, Danuza e Alessandra, que confirmam a tese do nosso cronista maior: “Venho de um tempo e de um mundo onde a loucura do homem só foi possível porque havia alguém mais forte do que ele, tanto que sobreviveu: a criança.
                                                       Um dia olharão o meu tempo lá do futuro e se perguntarão perplexos: como pôde a criança permanecer? Que germens de futuro tinha ela para mesmo assim prosseguir e salvar o mundo?”
                                                      Que germens são esses não sei, mas vendo minhas filhas, “duras-na- queda”, mesmo com o pai abandonando a casa, após 18 anos de casado, forçado pelas circunstâncias, convivendo com a dor de sua ausência física, posso afirmar que a criança vinga e é a nossa esperança de um mundo melhor.