'Presente de Grego'

Quando ainda era um guri, e ficava na porta de minha casa com o meu tio Rafael apreciando o movimento da rua, e a cada automóvel que passasse eu teria que adivinhar a marca, modelo, ano de fabricação, procedência etc., como se fosse uma sabatina colegial, e com direito a pontuação no mestrado (pelo menos no conceito dele, a minha média era ótima).

Era um pirado o meu tio Rafael. Mas um maluco do bem e muito alegre. Com ele aprendi muito desse sonho de consumo que muitos desejam e as financeiras proporcionam (quando se consegue quitá-los totalmente).

Foi também nessa época (década de 60) que eu estabeleci contato com uma personalidade do mundo automobilístico brasileiro, colecionador de carros antigos, Dr. Roberto Eduardo Lee. Proprietário de alguns raros exemplares como Packard, Cadillac, Rolls-Royce, dentre outros, era muito comum a sua presença em minha rua (Santo Antonio), onde sempre se dirigia a um determinado prédio daquela artéria, deixando estacionado junto à calçada do edifício um de seus belos veículos.

Eu, já devidamente "bacharelado" em marcas e motores, invariavelmente passava por aquela calçada no retorno da escola e me detinha por alguns momentos a admirar a bela máquina. Ora era um Cadillac Limusine 1936, ora um Packard 1934 Conversível ou um Rolls-Royce Silver Cloud 1956. Havia outros, mas "apaixonei-me" pelo Rolls-Royce, que também era conversível, pintura em dois tons de cinza (saia e blusa), com grade do radiador de aletas móveis e a estatueta do "Spirit of Ecstasy" (que tem uma história de paixão proibida entre um aristocrata inglês e sua "affair", que também acumulou as funções de sua secretária). Era um "clássico" impecável.

Um certo dia, também retornando da escola, vi o meu "eleito" estacionado ao longo da calçada. Estava um pouco sujo. Nada que uma boa lavagem não resolvesse. Foi o que fiz. Municiei-me de um balde com água, um pouco de querosene, flanela, escovinha e uma barra de sapólio "Radium" (para limpar as faixas brancas dos pneus).

Iniciei a lavagem, detendo-me a cada partícula de sujeira, por menor que fosse, quando, do alto do edifício, um grito se ouviu. Era o Dr. Roberto Lee, que esbaforido já estava no saguão de entrada do prédio, vindo célere em minha direção.

Mantive-me estático (acho que por medo) e, sem sair do lugar, aguardei o meu justo castigo. Afinal de contas, o que tinha eu de lavar sem que me pedissem? O Dr. Roberto, aproximando-se, estancou de repente e passou a examinar a tal lavagem. Um outro senhor, que estava em sua companhia, aproximando-se e sorrindo meio discretamente, perguntou-me o que eu estava fazendo. Respondi: "Lavando o carro, só isso!". Perguntou-me o que estava usando para lavar a lataria. Respondi-lhe: "Água e um pouco de querosene. Para tirar a gordura e a oleosidade, sem estragar a pintura". E o sapólio, perguntou-me. Disse-lhe que era para as faixas dos pneus.

Nesse ínterim, o Dr. Roberto já havia dado umas tantas voltas pelo carro e mais serenamente aproximou-se de mim. Ele era um homem alto, de largos bigodes negros e uma fisionomia grave. Tinha um olhar penetrante e vasta cabeleira. Lembrava Jânio Quadros (numa versão moderna e melhorada).

Ao se aproximar de mim, foi de uma gentileza impar. Mais ainda quando o seu amigo disse-lhe que eu havia tomado os cuidados necessários para não estragar a "relíquia".

O Dr. Roberto interessou-se e perguntou-me quem eu era, onde morava, onde estudava, quem eram meus pais, essas coisas. Pensei comigo: "A coisa vai feder pra meu lado. Ele vai querer ir lá em casa e se queixar pra minha mãe e eu vou cair no cacete". Perguntou-me se o conhecia. Respondi-lhe que já o havia visto por ali algumas vezes e que conhecia os carros com os quais vinha. Passei a relatar o meu conhecimento das marcas de seus carros, ano, modelo, cor etc., graças ao aprendizado que havia tido com meu tio Rafael (que sabia quem ele era).

Terminado o "interrogatório", o Dr. Roberto abriu um simpático sorriso e perguntou-me: "E de todos os meus carros que você conhece, qual você gosta mais?". Nem precisava duvidar. Elegi o Rolls.

"Mas os outros são igualmente belos" - disse-me ele. Retruquei e reafirmei a minha preferência pelo Rolls. "E, se por acaso fosse o Cadillac, ou o Packard, ou outro qualquer que sujo estivesse. Você lavaria também?". Retruquei e disse-lhe que não lavaria, pois não eram de meu agrado. Fez uma cara de surpreso e sorriu. Depois, mais sério, disse-me: "Pois, de hoje em diante, e pelo seu ato ousado e de muita coragem, faço-te feliz proprietário do Rolls-Royce. Simbolicamente", frisou. Depois, ele e seu amigo caíram em gostosa gargalhada.

Passado o frenesi da comicidade, olhou-me mais penetrantemente e disse: "O carro é seu, mas não vai poder guiar, emprestar, trocar ou vender. Você ganhou um presente de grego".

Mas que diabo. Ele era paulistano (meu tio disse que ele era do Guarujá), e agora vem me dizer que é grego! Vai entender! Mas, fiquei curioso com aquela expressão que nunca ouvira.

Terminado todo esse imbróglio e já saindo, o Dr. Roberto me chama e tirando do bolso Cr$ 50,00 (cinquenta cruzeiros), deu-me com a recomendação de comprar livros e cadernos e enriquecer a minha cultura, o que irremediavelmente não foi feito.

De volta para casa, perguntei ao meu tio Rafael o que era a expressão "presente de grego" e relatei-lhe o acontecido. Meu tio quase molhou as calças de tanto que riu e me esclareceu sobre a tal expressão. "É algo que nos dão, mas não é nosso. Um presente que não se pode usar". Fiquei p... da vida.

Quando me encontrei com o Dr. Roberto após o episódio e antes de cobrar dele as necessárias satisfações sobre o 'engôdo grego', ele me conduziu até a panificadora Pérola (Santo Antonio/Major Diogo) e, depois de um bom lanche, explicou-me o óbvio do presente. Contudo, e para amenizar a minha frustração, prontificou-se em me "apadrinhar", elegendo-me para seu "afilhado de rua", simbolicamente.

Daquele dia em diante, nada me faltaria. Livros, cadernos, roupas, fez amizade com meus pais, conversava com meu tio Rafael de montão (quando o tempo lhe permitia). Levava-me ao VCC (Veteran Car Club de Caçapava) para admirar outros clássicos de outros colecionadores. Enfim, foi muito bom e me deixou muitas saudades.

Eu já estava morando na Bahia quando soube, por meio de jornais, de sua trágica morte.

Não tenho outro tributo a não ser este, para homenagear aquele que, como tantos outros iguais, mantiveram e mantêm viva a história do Antigomobilismo no Brasil.

Também sou colecionador de clássicos antigos, mas de forma mais frugal e econômica. Tenho várias miniaturas em escala reduzida em minha estante. Dos verdadeiros, só um Ford Landau 80. Mas um dia chego lá, se Deus quiser.