ESCÂNDALO EM FAMÍLIA

Detesto funerais. Porém, este era diferente. Na quarta-feira à noite fui surpreendido pela notícia do falecimento de minha querida tia Glória, que havia sido internada para um procedimento cirúrgico considerado simples. Parece que houve uma hemorragia incontrolável ou coisa parecida. Não importa. o que importa é que se foi uma pessoa que era parte intrínseca da minha vida.

Penso que somos compostos das pessoas que nos rodeiam, ou pelo menos das que nos rodeavam quando tínhamos nossa personalidade em formação. Eu tenho certeza que um pouco de meu humor cáustico herdei desta parenta, que costumava caçoar da jequice das pessoas, especialmente na época em que ainda não havia se convertido à religião evangélica. Quando jovem, lembro-me como era divertida, bonita e boêmia.

Tive que ir ao enterro também por causa dos filhos dela, meus primos e primas que conviveram intensamente comigo. A mais velha, muito bonita, foi alvo da paixão adolescente e proibida de três primos, inclusive deste que escreve. Porém, muitos anos se passaram desde então e o momento, ontem à tarde, era de apenas dor. Nos encontramos, vestidos de preto e nos abraçamos. Depois ficamos em silêncio.

De longe também distingui a silhueta magra de Eliane, filha de outra tia (tinha dez tias, agora reduzidas a nove), que observava, solitária, a movimentação das pessoas que entravam e saíam da câmara mortuária. Com esta não troquei palavra. Não que tivesse qualquer antipatia por ela. Não sou de me antipatizar facilmente com as pessoas. Mas eu e ela nunca tivemos muita coisa em comum. Além do mais, a presença dela no velório me lembrou uma velha e dolorosa história, digna das melhores do saudoso Nelson Rodrigues.

Há mais ou menos uns vinte anos, a minha tia agora falecida era casada com um homem por quem era loucamente apaixonada. Sabíamos disso por causa dos constantes comentários dela a respeito do prazer que era sua convivência com ele. Lembro-me de como ela dava conselhos aos sobrinhos da importância de escolher um parceiro ideal e ser feliz. Eliane era uma menina de dezessete anos e sua mãe, minha tia Edith, extremamente pobre. Assim, minha tia Glória convidou a menina para morar um tempo com ela, de modo a ajudá-la nas tarefas domésticas. Em troca daria salário e ajudaria a custear seus estudos.

Eliane era uma menina namoradeira, dada a sair para as baladas nas sextas-feiras à noite. Um dia descobriu-se que estava grávida de três meses. Não se sabia quem era o pai. Obviamente minha tia ficou exasperada com aquela notícia, pois achou uma demonstração de total irresponsabilidade da menina. Como o clima entre tia e sobrinha ficou um pouco tenso, esta optou por voltar para a casa da mãe e lá criar seu filho.

Minha tia Glória e seu marido nesta época haviam se convertido para uma seita evangélica. Agora, afastados os problemas dos excessos de álcool, parecia que iriam viver em eterna harmonia. Mas como tudo que parece calmo demais geralmente precede uma tragédia de proporções gigantescas, ela teve nesta época a pior experiência de sua vida. Wilson, seu marido, anunciou que iria sair de casa e pleiteou a separação. Motivo: ele era o pai do filho esperado por Eliane.

A notícia caiu como uma bomba na família. Telefonemas multiplicaram-se com todos querendo saber detalhes daquele triangulo amoroso medonho que envolvia sobrinha e tia. Esta, inconformada com a situação, armou-se com um grosso fio de cobre e foi até a residência onde a sobrinha agora morava com seu marido, e sapecou-lhe uma surra digna daquela dada em Jesus no filme de Mel Gibson.

Depois disso, minha tia voltou a beber e se afastou da igreja. Ainda teve o desprazer de ver, no dia em que seu pai, meu avô, foi sepultado, a presença do marido – eles nunca chegaram a se separar oficialmente – de mãos dadas com a sobrinha em plena cerimônia fúnebre. Nesta época é que percebi porque realmente se deve evitar este tipo de atrito com gente de própria família, pois sempre haverá situações em que as pessoas terão de se rever, diferente de casos com pessoas estranhas à relação familiar.

Passaram-se os anos, e um dia Eliane separou-se de Wilson. Ele tinha se tornado um homem velho e doente. Ela, com sua ânsia por divertimento, não teria paciência para ficar em casa cuidando dele. Segunda lição que eu tive com este caso: um caso que começa com um ato sórdido realizado por pessoas sem quaisquer escrúpulos, dificilmente irá evoluir para uma relação de confiança recíproca e auxílio mútuo.

Ele não teve outra saída que bater à porta da casa de minha tia. Pediu para voltar. Não se sabe se por um resto de amor ou por pena, ela o aceitou de volta. Tratou dele até que se restabelecesse. Mas nunca mais a relação entre eles seria a mesma. Minha tia também mudara muito após tanto sofrimento. Eles ainda viveram mais uns sete anos juntos.

Depois do sepultamento, quando eu voltava de carro para minha casa, trouxe também a minha mãe, a quem perguntei por que não vira Wilson na cerimônia de despedida da titia. Ela respondeu que ele havia conhecido outra mulher com estava convivendo. O malandro, mesmo depois de velho, aprontara de novo. E ainda iria receber uma pensão deixada por minha tia, pois continuavam casados no papel.