A cápsula do tempo
Hoje ao acordar, ainda de ressaca da noite anterior, foram tantas as inverdades que ouvi que acabei por cair num sono profundo, apenas idêntico ao sono de um bebê em fase prematura. Minha mãe espreita pela fenda da porta na esperança de ouvir da minha parte um grito de regresso à pátria. Ela diz - que nunca mais me perdoará por tê-la abandonado - fui cruel com toda a minha família, pensei apenas em mim e na minha carreira profissional; mas, sinceramente, e apesar de tudo – não me arrependo, verei meus pais durante esta viagem pelo tempo. E matarei saudades das coisas boas que deixei lá, espero como é óbvio que elas ainda permaneçam no mesmo local. Se bem que duvidas me assolem o pensamento. Nada será como dantes, as coisas evoluíram...
Mal abri a janela do meu quarto, já a cápsula do tempo roncava a seu belo prazer em frente ao jardim de papoilas saltitantes, parecia daqueles carros velhos, tipo um Lanchester de 1897 com três rodas apenas, o chofer era velho, tão velho que mal segurava as calças, ao seu lado, um pequeno cachorro rafeiro ladrava ao som do rugir desta bela máquina, e como quem não quer a coisa dava uma “mijadinha” numa das rodas do meu veículo, talvez uma lembrança para seus velhos conterrâneos. Quiçá!
- O destino?
Ainda é uma incógnita, pelo menos pelos próximos segundos... Pretendo fazer a minha mala antes do anoitecer e escolher os sentimentos e as pessoas que quero levar. Não irei levar muita coisa, o período que vou passar viajando pelo tempo não será grande - assim eu espero - mas quero aproveitar para tirar partido das minhas inquietações, e tentar que o passado ou o futuro me possam tranqüilizar quanto a algumas coisas que têm ocupado parte da minha mente. A outra parte não pensa, ou então eu não consigo controlar os pensamentos dessa zona. É nesse setor que guardo os pensamentos ruins, eles estão alicerçados em bases frágeis e costumam desabar sobre mim quando menos eu espero. É a gelatina que há em mim.
Numa primeira instância, pretendo levar a amizade, o amor e o ódio, esses irão na parte de trás da cápsula. Na parte da frente pretendo levar ao meu lado: a minha melhor amiga, a maior inimiga e o meu grande amor. Esses usarão um cinto, não quero perdê-los de vista, já os sentimentos não adiantaria de nada prendê-los, pois qualquer tentativa de... Seria prostrada ao fracasso.
Antes de pegar nas rédeas da cápsula, e pedir ao meu camarada para marcar no painel o meu destino, irei despedir-me da minha casa - de minha não tem nada, é alugada; de qualquer das formas, temo que nunca mais volte a vê-la, que nunca mais seja o mesmo. Do resto, estou preparado para o que der e vier, uma coisa eu tenho a certeza, depois desta viagem algo irá mudar na minha vida. {Estou pronto} o barco zarpou e vamos a caminho do passado – melhor escolha seria impossível. No painel está marcado o ano de 1872, e a cidade é Paris. Vamos ao encontro dos boêmios Rimbaud e Verlaine. Mal pisamos em solo francês, sentimos logo na pele a brisa do rio Sena, onde decidi levar a passear minha grande inimiga - ela - cujo nome não passa de uma escarpa nórdica, rapidamente se apaixonou pela vida e obra de Rimbaud, o que não é difícil, talvez tenha sido o maior poeta de todos os tempos, como também o pândego da noite parisiense, o homem que vivia do álcool, das drogas e da desgraça. Esta passagem serviu apenas para me livrar da minha antagonista, acho que ficou bem entregue, só espero que não adira à licantropia, doença que corria nas veias de Verlaine, fiel escudeiro de Rimbaud. Com ela fica também o ódio que tem corrompido minha vida, não sentirei mais saudades desse par.
- Ooh la la... Excusez mes amis pour petit cadeau. Au revoir (...)
Nossa viagem continua, ela prossegue ao ritmo de um cruzeiro pelo mediterrâneo, estamos agora a caminho de Portugal, ano de 1929 que marca o adensar da neurose de Florbela Espanca e que antecipa o seu suicídio em 1930; o Porto ou cidade invicta é nossa segunda casa, esta conheço como a palma da minha mão, bela como os poemas que fizeram de Florbela um verdadeiro fenômeno intemporal, ela que teve azares atrás de azares na sua vida, sofreu como nunca, e morreu pelas suas próprias mãos. Deixou um legado de poesias tão grande como sua coragem, coragem de escrever. Com ela deixo meu grande amor e o mesmo sentimento, acho que estarão em boas mãos, os sentimentos dessa mulher sempre estiveram à tona da sua escrita, como ficará o sentimento que tenho por esta mulher que viajou comigo até aqui. Good bye my Love.
Resta-me agora viajar em direção ao futuro, e levar comigo a minha grande amiga e o respectivo sentimento no banco da frente, agora que o espaço é maior, e que me livrei das pessoas que me causavam sofrimento, posso dormir em paz enquanto não chegamos ao ano de 2010; para passar o tempo, o velhote se entretém endireitando as lunetas e afiando seu bigode, de tão fiel se torna escravo da sua máquina, ele é apenas a ponta do iceberg desta viagem, o timoneiro capaz de mover montanhas para conseguir tamanha façanha. Admiro sua audácia... Ele nem me conhece, tomara que um dia me olhe nos olhos como se tentasse passar um testemunho, como se fosse uma forma de me agradecer por esta aventura. Ela foi para ele também um reviver do passado, ainda que ele não profira tais palavras. Para mim mais uma constatação das minhas dúvidas. Mas ela ainda não acabou - a viagem no tempo continua, mas no espaço se mantém, como se o navio ficasse atracado ao longo desse período.
Aproximamo-nos a passos largos do dia um de Setembro de 2010, dia da nossa “re-chegada” a Portugal, em que vou matar saudades dos meus, na bagagem levo a esperança de pisar no meu querido país, que me enche de alegria e satisfação. Saio de mão dada com ela no Aeroporto Sá Carneiro, meus pais me esperam ansiosos pelo reencontro, quando os vejo choro de alegria, mas levo agarrada a mim essa pessoa, que eu amo como amiga, como companheira, como mais que tudo. Os Meus se abraçam a mim e me perguntam quem é aquela garota de simplicidade arrojada, de cara de anjo - eu respondo - que não é minha namorada, mas é minha amiga, afinal amizade é muito mais do que andar de mão dada. Ela é: a pessoa que me entende, que me respeita - esta não engana, é como a roupa branca, por muito suja, será sempre branca. A estadia durará um mês, e tentarei mostrar este belo país para Henriqueta, minha amiga inseparável, ela me olha com aqueles olhos esbugalhados, de cor clara, como se fossem esmeraldas lapidadas, me dá um aperto de mão que mais parece uma manifestação de alegria por ter sido a única a transpor a barreira do passado para o futuro; às outras, que despachei ao longo desta viagem, espero, sinceramente, que cada uma delas possa ser feliz. Não lhes guardo rancor nem mágoa, apenas fui obrigado a fazer escolhas. E assim fiz. Fiz as minhas escolhas, mas deixei-as bem entregues, desde que saibam pisar o solo de seus poetas.
Após esta estadia, regressarei ao Brasil, deixarei a minha amiga em Portugal, país que voltarei um dia para viver em paz e construir família. Não ficará só, deixarei meu heterônimo Carlos Alberto com ela - ele será a companhia dela durante minha ausência. Confio nele, embora todos os cuidados sejam poucos. É um risco que corro, ainda que perspectivado. Quando vou a ver já estou no dia um de Outubro de 2010 dentro da Cápsula, encontro-me ao lado de um senhor que nasceu para ousar, ele é George Wells, o monstro sagrado das viagens no tempo, será a minha última “companheira” de cápsula, talvez ele seja mais do que isso. Ele foi também o chofer da máquina ao longo desta aventura, e o último dos samurais resistentes. Lado a lado, vamos em direção ao presente e tentar viver diferente.
Sei que ele viveu, só não sei se eu viverei!