Manifesto idiossincrásico
Em nossa complexa língua, há construções difíceis de serem assimiladas. Isso é pacífico. Não obstante, ousamos inventar modismos, incrementar o que já é complicado e desvirtuar o que ainda não dominamos.
Não me refiro às expressões "a nível de", "tipo assim" e outros barbarismos. Também não é caso do equivocado uso de "asterístico" no lugar de "asterisco"; ou de "aspiral", quando o correto é "espiral". Tampouco me refiro à robusta lista de redundâncias do cotidiano: habitat natural, status quo vigente, prefeitura municipal, média com leite, meio ambiente...
Nesse momento, minha principal idiossincrasia léxica está direcionada ao termo "enquanto pessoa". Ora, ninguém duvida que temos que exercer vários papéis sociais: o profissional, o pai, a mãe, o aluno, o professor, o cidadão, o filho...; e também vários papéis psicológicos: o amigo compreensivo, o profissional comprometido, a mãe atenciosa, o professor culto, o aluno aplicado... Minha pergunta-manifesto é: no exercício de qual desses papéis, e também em todos os não citados, deixamos de ser uma pessoa?
Nesse contexto, a palavra "enquanto" assume o significado "na condição de", o que aponta para uma situação em que o indivíduo não dedica toda sua existência à intransponível experiência de ser pai, ou amigo, ou profissional. Portanto, é legítimo o uso de "enquanto pai", "enquanto profissional", "enquanto amigo", mas "enquanto pessoa" não cabe em nenhuma construção. Já nascemos gente, pessoinha, mas gente; vivemos como gente e morremos da mesma forma. Essa condição não é mutável. Não nos transformamos em animal, planta ou objeto no percorrer de nossa trajetória.
Abusando de minha condição de ser, acho que estou ficando velha e chata. Fazer o quê? Isso é inevitável; tanto uma coisa quanto outra. Por isso, permito-me estremecer quando ouço alguém usando o termo objeto de minha implicância. Pior ainda quando o leio, fica difícil conter o aborrecimento. Isso porque eu, enquanto leitora, estou a cada dia mais exigente.