'Os Casarões do Bixiga'
São Paulo é uma cidade que concentra inúmeros tipos de construções, em suas diversas formas. Coloniais, “belle-époque”, “art-noveau”, moderna, enfim, uma grande variedade de velhas e novas edificações, algumas delas com a fidelidade do passado e outras com as facilidades da vida moderna e com o que há de melhor em tecnologia.
Nos bairros em que se assentaram os nossos primeiros colonizadores urbanos da capital paulistana, dentre eles o Brás, Mooca, Ipiranga, Aclimação, Vila Mariana, o próprio centro antigo e muitos outros, é comum ao observador mais atento poder admirar o tipo de construção de algumas casas e edifícios em sua complexidade e riqueza de detalhes.
Portas entalhadas, vidros das janelas com desenhos feitos com abrasivos, muitas delas com anagramas da família, platibandas imponentes, paredes trabalhadas com margens debruadas em cimentos crus ou pinturas combinantes.
Não seria diferente nas velhas ruas do Bixiga e, nem difícil de encontrar velhos casarões, alguns deles do final do século XIX e início do século XX, outros avançando pelas décadas de 10, 20, 30 e 40, em que revelam o que foi a arte das construções daquelas épocas.
Eram construções em que foram utilizados grandes tijolos de barro cozido ao sol ou assados em fornos de lenha e, para o “levante” das paredes era comum à utilização de uma mistura “ligante” ao cimento, conhecida aqui nas bandas do nordeste como “arenoso”.
Portas e janelas eram confeccionadas com madeiras de boa qualidade, imunes, algumas vezes, aos cupins ou outras larvas e, geralmente eram em sucupira, pau-d'arco, pinho de riga, massaranduba, angelim. As de jacarandá da Bahia, cerejeira ou outra madeira nobre, eram opções mais caras.
Eram portas de duas folhas (em geral), com boa altura, encimadas por “bandeiras” em vidros trabalhados, ou vitrais coloridos, que lhes conferiam uma beleza estética e elegância ao átrio principal, espécie de 'hall' de acesso à sala principal. As janelas também seguiam o mesmo padrão, com o diferencial de terem em sua parte envidraçada uma espécie de pórtico (aqui conhecido como postigo) que isolava a claridade e a visão externa quando fechada.
No interior das casas, que em geral eram acessadas depois de dois ou três degraus a partir do nível da calçada, podia-se notar o piso, também em madeira, composto por largos tabuados que se uniam uns aos outros com encaixes e com largura média de vinte centímetros e comprimento que se prolongava pelo cômodo onde fora aplicado.
Havia também soalhos que eram aplicados longitudinalmente às paredes que corriam os cômodos e em números de três a quatro, sendo que na parte central poderia ser aplicado um losango, que conferia mais beleza. O “pé direito”, altura interna, destes casarões eram algo inusitado para a nossa época. Em geral a altura era de quatro a quatro metros e meio.
Com teto forrado em ripas de madeira. Muitos destes forros seguiam a tendência do trabalho geométrico, geralmente era aquele que apresentava um losango central, margeado por ripas lineares e do centro pendia um lustre ou candelabro que deixava à mostra belas luminárias. O problema consistia quando alguém instalava uma “panflonier”. O trabalho era trocar as lâmpadas queimadas.
Os demais cômodos seguiam o mesmo padrão deste primeiro que, em geral era a sala de visitas, espaço nobre da residência, local de recepção e tertúlia, onde os convivas instalavam-se confortavelmente em sofás de forte estrutura, forrados com o mais fino “jacard” ou chenile ou um belíssimo conjunto de palhinha trançada, havendo um destacado lugar para o famoso rádio de válvulas “Capelinha”, onde todos podiam ouvir os noticiários e as rádios novelas da Rádio Nacional.
Os conjuntos de sofás com “pés-palitos” foram introduzidos na década de 50, juntamente com a televisão. Mas, isso é uma outra história.
Na cozinha, o ambiente diferenciava um pouco por sua atmosfera característica. O piso era em terracota cozida, não cerâmica, e estampada com roda-pé. Os azulejos iam até o meio da parede e teto com forração em treliça que ajudavam na dispersão dos vapores dos cozimentos dos alimentos.
Pias em “marmorite” branco leitoso com bacia de ferro revestida com ágata branca, sobreposta em um balcão que seguia o mesmo material azulejante das paredes. Lembram que falei do acesso depois de subir dois ou três degraus? A finalidade era justamente elevar o patamar da casa para dar espaço ao porão inferior, permitindo uma maior ventilação e evitar a umidade do solo ao piso tabuado.
Este espaço era reservado para guardar utensílios e ferramentas e em muitos casos servir de moradia em uma futura sublocação. Por isso, era muito comum observar um gradil, espécie de respiradouro, abaixo de cada janela, já que tais porões seguiam fielmente às divisões dos cômodos acima. Em posição contrária, no alto do teto, ficava o sótão.
Tinham a função de isolar o frio ou calor excessivo e guarneciam o interior das partículas de poeira e pequenos detritos açoitados pelo telhado. As fachadas, frontais e laterais quando não eram geminadas a outras, exibiam um trabalho de decoração ímpar com platibandas confeccionadas com motivos dos mais diversos, do medieval, com “ameias” simetricamente instaladas, ao retilíneo moderno.
Algumas com “gárgulas” ou outra escultura (aves, efígies humanas, etc.) e que davam certo destaque de imponência e austeridade à construção. Muitas vezes refletindo a personalidade de quem ali habitasse. Para as noites frias paulistanas, o conforto era ter uma lareira com uma pequena chaminé finalizada com um “chapéu chinês" quadrado, para evitar a entrada de chuvas fortes e também de algum indesejável meliante.
Afinal de contas, nunca tivemos a tradição do “Papai Noel” entrando por nossas chaminés para nos deixar seus presentes. Muitos destes casarões transformaram-se em “malocas” ou “cortiços” e, em face das grandes proporções de alguns de seus cômodos (vários chegavam a ter de dezoito a vinte metros quadrados de área), eram comuns famílias inteiras ocupá-los, fazendo divisões internas com tapumes ou cortinados. Muitas famílias ainda residem nestes antigos casarões, transformados em coletividade.
Por fim, o banheiro. Ambiente mais que necessário a toda família, eram amplos e as peças que o compunham eram vaso, bidê, pia e o box de banho com banheira, que era servida com um grande aquecedor à gás, ainda existe em muitas casas. Sua decoração acompanhava quase sempre o aplicado na cozinha, no que se refere ao piso e paredes ou era revestido com pequenas pastilhas, de toque elegante e delicado.
Assim eram os casarões do Bixiga e dos muitos bairros de São Paulo, alguns grandes, outros menores, com varandas, jardins e muretas, ou como este que narrei rente à calçada, com suas portas, janelas e gradil de porão debruçado para o movimento das ruas. Se você, assim como eu, tem saudades deste tipo de construção, aqui vão duas notícias.
Ainda existem muitas delas à venda. O preço? Considere que você estará comprando uma “relíquia” que te fará arregaçar as mangas para consertar alguns “pequenos” defeitos e deixa-la como você quer. Nada que umas dezenas de milhares de reais, talvez centenas, possam resolver. Ao final, é só curtir a exclusividade e o espaço. Caso contrário, a periferia está abarrotada de apartamentos “apertadamente” funcionais e a preços a perder de vista... (financiados, é claro).