Três lágrimas

Três lágrimas

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza

Eu chorei pela primeira vez na minha vida quando meu casamento com Dalva desmoronou, soterrado por visões sonâmbulas, no árduo facho da angustia dos estertores mais sombrios. Contava vinte e poucos anos, era muito jovem e imaturo. Entre rastros de violências mal cuidadas, parecia um nômade na busca constante da plenitude pessoal. Nenhuma experiência me conduzia à frente, principalmente a de convivência a dois. Na cabeça, um vazio de múltiplas formas não deixava os pensamentos tomarem chão. Se às vezes cogitava abrir o peito na tentativa de modificar as coisas mais corriqueiras, secretos ventos sopravam contrariamente e levavam para longe esses desejos mais veementes. Por isso, não havia a quem recorrer para pedir conselhos. Fazia o que dava na telha, como Lúcifer nas trevas, o espirito resistindo às fúrias do inferno, batendo, constantemente, com os costados nágua. Morávamos em um subúrbio apodrecido de São Paulo e nessa época eu prestava serviços a meu pai. Estudava faculdade à noite. A cidade, demasiadamente provinciana, consumia a existência dos dias numa luta suprema de atribulações mórbidas. O povo, em si, tacanho e restrito a dogmas antigos, não oferecia condições de perspectivas melhores. Tudo girava em torno de inervante rotina. Um belo dia, acorrentada dentro do próprio ego, Dalva partiu. Foi embora como o vento gasoso transformado em furacão. Levou mala e cuia, e a tiracolo, arrastou nosso filho Eduardo.

Por esse motivo, pouco ou quase nada recordo dele. O que guardo, são frágeis mimos; retratos intermediários do único aniversario que conseguimos realizar juntos, nada mais. Se olho no espelho e questiono respostas, o silêncio exaurido me cerca e violenta bem fundo o coração. Se penso no garoto ou experimento arrancar lembranças do passado, apenas flui a negação de um grito sufocado na garganta seca. A toda hora, fantasmas iracundos transpõem os umbrais do imensurável e me amedrontam. Geram, no cérebro, cenas abjetas de um filme triste e melancólico que não gostaria de rever. Deparo com feridas abertas cujas chagas não cicatrizaram. Resumo esse tempo observando que muito cedo, na minha vida, ficou tarde demais. Comecei a namorar, andavam altas, as horas no relógio da desesperança. Aos vinte, portanto, o húmus da solidão denegrida já havia envelhecido os dias e escurecido, sobremaneira, meu risonho e cálido amanhã...

Eu chorei pela segunda vez quando meu relacionamento amoroso e afetivo com a Carla complicou mais do que devia. Naufraguei, de repente, nas águas gélidas de um mar enfurecido e me acorrentei em porões mal cheirosos, onde lâmpadas e grades se confundiam com despojos de um fim de aurora traçado por mãos incógnitas. Nessa época, já diplomado, nascia do estardalhaço do anel de grau à vontade de seguir carreira e me tornar um advogado brilhante. Na casa dos trinta, ganhava a vida sepultando os meses com os poucos clientes que apareciam no escritório. Carla, a jovem esposa, moldava seus projetos a instintos soltos; construía um universo sem subterrâneos. Nas horas de folga, trabalhava comigo na função de secretaria. Também estudava as ciências jurídicas e pretendia, mais a frente, ser alguém de raízes, pontilhando caminhos em busca de crepúsculos não fecundados. Antes de providenciar o divorcio com Dalva (a primeira mulher), passamos a dormir interiorizado sono, acordar com a alquimia do pôr do sol, a dividir tarefas e afazeres embaixo do mesmo teto. Dessa união, olhos e pensamentos navegando idêntico curso, futuro e pretérito interligados em igual verbo, nasceu Narjara. Todavia, o destino se esvaiu nos contornos da repetição e dividiu espaços. De súbito, veio o fim. Com ele, rusgas, gritos, lágrimas molhando o espelho, reservando, uma vez mais, novas incertezas e dissabores. Cada um seguiu por sendas opostas. Ânsias solfejando rimas desconexas, desenharam um poema melancólico em derredor do que restou de um amor que parecia eterno.

Na verdade, foi dura a visão que entrou pela janela na qual me debrucei, cansado, vencido, magoado, tentando ver lá fora, na multiplicação do pesado silêncio, o vazio que permaneceu depois que ela bateu à porta da casa alçando vôo em direção ao incerto porvir...

Então eu chorei pela terceira vez. Desta feita, não por casamentos destruídos, ou por invasões de sofrimentos no alagadiço da alma em frangalhos. Derramei lágrimas em trêmulo mistério pelo nascimento de Amanda, minha filha com Marlúcia. A miudinha chegou, num mastim sonoro, bebendo o orgulho que crescia ao meu redor. Abriu os olhinhos assistida por bons médicos, maternidade de primeira linha, tudo a tempo e a hora. Eufórico, nutrindo a certeza do mortal esplendor, não cabia, no corpo, o contentamento que fluía de dentro do meu coração. Preparei sonhos para o esperado dia. Ensaiei piqueniques, acordei quimeras de um adormecido desejo de explosão refreado na alma. Deixei, que florescesse, a esperança, como uma canção inocente rasgando o crepúsculo. E ela coroou eterna estrela, efêmera luz divinal, anjo descido do espaço. Mas trouxe, porém, no lábio superior, um pequeno corte auto determinante desfigurando o rostinho de boneca. Foi, na verdade, um choque, um baque tremendo que consumiu parte de mim. Senti-me como o faminto sem o pão, como a dor incômoda no enfermo descrente, ou como a fé que se matou de tédio no peito de um condenado à morte. Tal como um balde de água fria, atirado com afoiteza em noves meses de espera, cercados de preparação e surpresas. Todavia, Amanda, meses depois, cirurgiada, voltou ao normal. Do quadro antigo somente fotos selecionadas em álbuns de família. Uma fita de vídeo mal gravada. Um pedaço da história, da pureza, da infância que logo se tornará remota. Evidentemente que essa lacuna não ficará adormecida, ou esquecida no “para sempre’’. Amanhã, ou depois, já mocinha, Amanda, irá por certo, indagar por essa fase da sua estrada. É o livro que ao ser folheado não poderá estar faltando nenhuma página, mesmo que essa página traga, à tona, acontecimentos e lembranças que deveriam ficar enterradas.

Amanda, hoje, grita o universo a plenos pulmões. É flor em botão, barco de alegrias singrando águas tranqüilas. Minha filha saltita, pula, corre, ri o rostinho marcado por uma tênue e quase apagada cicatriz. Ingênua pétala misturando esperança e perdão em frashes endereçados a Deus. Seu olhar é um pouquinho triste, com certeza, é um pouquinho triste! Quando a vejo (o dedinho polegar esquerdo na boca), me ponho a imaginar o que fiz de errado para ser castigado através dessa inocente. Ao mesmo tempo, me alegro interiormente, porque numa determinada intermitência do destino, entre espinhos e chagas, nesse encontro especial (por que não?), ela chegou como uma esperança sem par, iluminando com fulgor descomedido, meus passos incertos. Essa mocinha quer eu queira, ou não, mudou radicalmente os horizontes que pairam sobre minha cabeça - e mais que isso- me fez acreditar piamente, que lá do alto, bem acima das nuvens visíveis, alguém gosta um bocadinho assim, de mim. “Amandita” (como a trato carinhosamente) me consagra ao seu esbanjamento de vida plena e eu me sinto inteiramente realizado e feliz por ter tido a sorte de ser escolhido para ser seu pai.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 06/05/2010
Reeditado em 21/05/2020
Código do texto: T2240151
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