NÃO!

Ontem, assistia ao jogo do Santos quando, aos 36 minutos daquele memorável embate, levei uma bordoada, dessas que não doem, mas que se sente como se fosse uma mão espalmada a arder-lhe a cara. Foi como se um ente, que não se vê, mas se pressente, estivesse a me esbofetear o rosto a fim de trazer-me de volta de um transe, de um estado de choque. O, então, protegido dessa entidade a quem a minha atenção deveria ser direcionada? Um jovem, de 21 anos, chamado Paulo Henrique – o Ganso.

Ao 36 minutos do segundo tempo, ele não fez uma jogada celestial... já a tinha feito, com as bênçãos filosóficas e futebolísticas de Sócrates. Aos 36 minutos do segundo tempo não deu um toque ou driblou um goleiro, muito menos entrou com bola e tudo ou teve humildade. Não era hora para isso. Aliás, muito pelo contrário. Ao 36 minutos do segundo tempo, Ganso disse “Não!”. Um não que representou uma atitude praticamente extinta no futebol brasileiro. A atitude de um líder que, ao que parece, desabrochou ontem, no estádio Pacaembu, aos 36 minutos do segundo tempo.

Há tempos se fala na crônica esportiva tupiniquim que não temos mais líderes dentro de campo. As perguntas são sempre as mesmas: “Que jogador hoje em dia fala em campo? Que jogador grita e chama a atenção de seus companheiros? Que jogador comanda realmente? Que jogador chama a responsabilidade para si e diz, simplesmente, ‘não’ quando percebe que até mesmo seu superior está errado?”. Pois, à exceção dos goleiros Rogério Ceni, do São Paulo, e Marcos, do Palmeiras, (que já quase pertencem ao passado – e ficam sempre sob as traves, longe do desenrolar do jogo) eu não via nenhum... até ontem, aos 36 minutos do segundo tempo.

Quando, em 1958, Didi e companhia se reuniram com o Dr. Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação da seleção brasileira na então Copa da Suécia (e que hoje empresta seu nome ao estádio onde Ganso desfilou sua conquista), e praticamente impuseram a escalação de Pelé, em seus viçosos 17 anos, não vivíamos esta escassez de líderes. Quando Gérson e Carlos Alberto decidiram, apenas entre eles, durante a semifinal contra o Uruguai, sem consultar Zagalo (então técnico da seleção, na Copa de 70), que Gerson deveria trocar de lugar com Clodoaldo (que, em virtude disso, fez o primeiro gol da virada), porque o primeiro estava sofrendo dura marcação, também não sofríamos com essa timidez. Quando Dunga, então capitão, gritava do tombadilho a guiar a nau brasileira até o título de 1994, nos Estados Unidos, ainda tínhamos tamanha altivez. Agora, e há pelo menos duas copas, sofremos sem esse tipo de líder.

E ao ver Ganso batendo no peito e dizendo “Não, não vou sair. Eu vou ficar no campo”; ao vê-lo levar a bola para o canto e segurar com domínio, toque, talento, lençóis e tudo o mais que tinha direito, um, dois, três adversários; ao vislumbrá-lo a controlar a redonda, colocando no bolso árbitro, companheiros, torcida, relógio e, até, o próprio treinador, percebi que, nem que fosse apenas por aqueles minutos, voltamos no tempo (é apenas linguagem figurada, viu, Moacir, sem entrar em questões de física quântica). Voltamos ao tempo em que um atleta respeitava, mas não temia. Tempos em que Zito, Didi, Bellini, Mauro, Carlos Alberto, Gérson, Zico, Falcão, Dunga, Sócrates, colocavam o jogo sob sua tutela e diziam “Epa, não, não senhor, aqui quem manda sou eu.”

Olhe, meu amigo de fé, meu irmão camarada, se você pretende saber quem Paulo Henrique Ganso é, eu posso lhe dizer: é um talento... e, pelo visto, um líder. Daqueles que só as curvas da estrada de Santos podem entender. Não o chamarei de craque, nem de gênio... até por que acho que tais palavras ficaram marcadas ao longo do tempo. Portanto, não vou defini-lo (inclusive, em respeito ao seu parceiro, Neymar, que também acabou com o jogo). Porém, temos de admitir, fazia tempo que não se via tamanha coragem em campo. Coragem que nos falta muitas vezes no dia-a-dia. Que nos falta para gritar ao senado, “Não!”. À esposa ciumenta, “Não!”. Ao filho arteiro, “Não!”. Aos preços no supermercado, “Não!”. Aos juros do banco, “Não!”. Ao chefe mal-educado, “Não!”. À balança, “Não!”. Ao cigarro, “Não!”. À retranca da Internazionale, “Não!”. Às novelas mal-escritas, “Não!”. E à possível não-convocação do Ganso para a seleção, “Não!”.