A BONECA GRISALHA

Sentada no toco da velha mangueira, ela olha à sua volta. Está desolada. Sem forças, nem percebe que o sol está se pondo, pois acabara de chegar do cemitério onde ali deixara seu companheiro. Cinco décadas de união. Nesses cinqüenta anos muita água passara por debaixo da ponte. Nada fora perfeito. Nada é. Mas na alegria ou na dor criaram os filhos, viram chegar os netos e os bisnetos.

Naquele momento, a anciã levanta os olhos embaçados e estarrecida contempla o inimaginável: a mesa que ficava no alpendre estava sendo preparada e o genro chegara com vários pacotes debaixo do braço. Outras pessoas carregavam refrigerantes... Estavam se reunindo para festejar!!! Naquele momento descobria que somente ela estava de luto. Sentindo uma dor inefável toma uma decisão: dará não para a vida, optando pela morte.

Dali foi levada para dentro. Carregada feito uma boneca. Não mais falou, nem comeu, nem bebeu. Passou a depender de mãos alheias. Ninguém sabia dizer o que sentia e se sentia. Os filhos, no início, bem que tentaram. Tentaram??? Usaram todos os métodos para trazer a anciã de volta à vida. Nada conseguiram. Veio uma enfermeira, colocou o soro, deu as orientações necessárias e se foi. Ficou acertado que se precisassem dos seus serviços, seria chamada. Afinal, uma das filhas já tinha experiência com essas coisas... Tinha até o apelido de Papa-defunto. Ah, e também diziam que quem quisesse uma pessoa pra tomar conta de velhos sem família era só dá um sinal que ela tomava conta dos velhos e dos cartões do benefício! Tinha um bom coração. Aliás, um grande coração.

Enquanto a anciã ia partindo aos poucos... Os filhos reviraram a casa à procura dos tesouros esquecidos. Afinal, diziam: “Mãe, costumava guardar todo dinheiro e presente que recebia.” Mexeram em tudo. Fuçaram até o colchão onde jazia a boneca grisalha. Tinham que achar o que estava ‘perdido’ antes que chegassem os urubus. E assim, abriram travesseiros, colchões, armários, guarda-roupa, despensa, etc.

Nos últimos dias que antecederam a morte da anciã, passaram a brigar pelos pertences ‘maiores’. Esqueceram de cuidar da moribunda. Nem perceberam quando uma velha entrara para visitar a enferma. Essa velha era dona Antonieta, amiga de longas datas. Dona Antonieta entrou no quarto escuro, acariciou os cabelos grisalhos da sua companheira de estrada e ali chorou baixinho ao contemplar aquele quadro. Mas chorar não resolvia nada. Enquanto dizia o quanto sua amiga era importante na sua vida, relembrando alguns momentos que só elas podiam compartilhar; pôs-se a trabalhar. É, que percebera que sua amiga estava suja, molhada. Limpou aquele corpo da melhor forma que pode, trocou os lençóis, a camisola, passou uma chumaço de algodão embebido em água naqueles lábios ressecados, um pouco do talco que ela tanto gostava...

Surpresa percebeu lágrimas descendo pelo rosto da boneca grisalha, e, com um abraço, dona Antonieta encostou sua boca no ouvido da amiga, se despediu, dizendo:

- Maria, eu entendo o seu silêncio. Mas, agora é hora de partir.

Oito dias após a morte do seu companheiro, a boneca de pano dava seu último suspiro. Enquanto uma filha ia procurar um médico que lhe desse um atestado de óbito, um filho levava um documento e pegando o polegar da defunta apertava sobre um documento onde um imóvel era-lhe deixado como herança; outra filha revirava o guarda roupa tirando tudo que podia ‘porque ela tinha a mesma medida da mãe e era mais necessitada’.

....

À tardinha, antes do sol se por, a boneca grisalha estava sendo enterrada descansando dos seus labores.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 03/05/2010
Código do texto: T2234924
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