Bizarro
Bizarro
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
Oito e meia da manhã. Dona Cecília está sentada tomando seu desjejum. A campainha toca. De má vontade se levanta. Caminha a passos lentos devido a idade e alcança o hall que antecede a grande sala de estar. Estica o corpo. Fica na ponta dos pés. Espia pelo buraquinho do olho mágico. Vê um homem de costas. Esse é um dos muitos defeitos que as pessoas, de um modo geral, fazem questão de carregar consigo. Ao baterem na porta de alguém, principalmente em prédios de apartamentos, ao invés de permanecerem com a cara virada para o olho mágico, a fim de serem prontamente reconhecidas, optam por se distraírem mirando um ponto qualquer, ao acaso.
Dona Cecília fica um instante, quieta, imaginando que o sujeito logo desistirá. Volta à mesa. Renova o café. A campainha volta a tocar. Desta feita, duas, três vezes. Furiosa, a sessentona retorna ao hall. Desta, todavia, não se dispõe a perder tempo perscrutando o corredor. Abre de vez. Solta um grito medonho ao tempo que bate a porta correndo. Rosilda, a empregada, vem lá de dentro, às carreiras. Atrás dela, acode também a sobrinha de dona Cecília, Nancy e a filha Ciane, de oito anos. Rosilda se benze.
- Que foi, dona Cecília? Que bicho lhe mordeu?
Nancy ampara a tia e a leva para um pequeno sofá.
- Por Deus, o que foi que aconteceu?
Ciane, curiosa, segura carinhosamente a mão da espantada e boquiaberta velhinha.
- Credo, o que foi que fez a senhora se assustar tanto assim?
Como dona Cecília perdera a voz momentaneamente, Nancy refaz os passos da tia. Escancara a porta, de vez. Agarrada a sua saia, está a pequena e espevitada Ciane, tomada pela curiosidade de saber o que fez a velhota cair arriada de medo e pavor. O cara parado no umbral se veste impecavelmente. Usa terno preto, camisa branca e gravata marrom, combinando com os sapatos. Na mão esquerda uma pilha enorme de livros.
- Pois não, senhor?
- Om ia, enhoita – diz a visita inesperada com voz fanhosa. – Eu ome é Eorace. Ou endeor ambuante ê íblias agradas.
- O que? Como!?
Nessa hora - e só nessa hora - Nancy percebe que o infeliz não tem nariz. Quando um ser humano não tem nariz, a coisa complica um pouco, ou melhor, complica muitíssimo. Sem orelha, passa. Com um olho só, engana. Sem um braço, idem. Sem os dois, vexa, oprime, acanha, embora a gente olhe de soslaio, ficando inteiramente penalizado. No fim, se acaba aceitando. Contudo, um rosto sem o nariz é de deixar qualquer filho de Deus assustado. A bem da verdade, assustado seria pouco, assustadíssissimo, ou coisa parecida, cairia de excelente tamanho.
- Não queremos nada, obrigado.
Fecha a porta no nariz –, no rosto do desditoso -, ou melhor, quase consegue. Ciane se adianta às intenções da mãe e aquiesce com ela, envolta num sorriso infantil repleto da mais pura inocência.
- Mãezinha, atende ele. Coitado, não tem nariz!
Nancy fica sem ação. Rosilda chega bisbilhotando. Por pouco não segue o mesmo caminho da patroa, tendo um piripaque baiano. Volta no passo que veio sem olhar para trás.
- O senhor não quer entrar?
- Uito obriado.
- Pode falar. Sou toda ouvidos.
O desnarigado coloca sobre uma mesinha de centro os volumes que carrega.
- Ou endedor ê Íblias agradas. Ostaria ê icar om um exempar ara ê ajuar? Ez eais.
Nancy não consegue entender lhufas nenhuma. A guria, porém, esperta e arisca, socorre a mãe e a tira de um embaraço iminente.
- Mãe, o tio vende Bíblias Sagradas.
- É!?
- Ele falou que custa dez reais. O nome dele é Leporace.
O rapaz olha para a menina com ternura incontida e sorri um sorriso feio e deformado, mas franco e verdadeiro. Em seguida desvia o rosto para a mãe. Balança a cabeça de modo a confirmar as palavras da pequena.
- Arotinha eserta. Enza Eus!
Sem saber o que responder, encara a filha.
- O tio falou que sou esperta. Disse mais: Benza a Deus.
Nancy chacoalha a cabeça feita uma vaquinha de presépio.
- Compra, mãe. É livro de Jesus.
- Como é que você sabe?
- Minha professora, na escola, outro dia falou sobre isso. Compra?
Tanto a jovenzinha insiste que Nancy, condoída e compadecida do estado lastimável do vendedor, acaba adquirindo dois exemplares.
- Tome, um é seu. Este outro, dê a Rosilda.
Apanha a bolsa. Tira o dinheiro e estende ao rapaz.
- Aqui está. Aceita um café?
- Ê ão or inômodo...
O café é servido. Ao terminar, o vendedor retira de um bolso interno do paletó um maço de panfletos, onde se vê, de um lado, a oração do Pai Nosso e, de outro, os Dez Mandamentos. Estende à criança.
- Rá ocê! Embrança ô iio...
Passa a mão nos livros. Acena um adeus silencioso. Vira as costas e ganha o corredor.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 56 anos, é jornalista.