A substantivação da inteligência

"When you look into an abyss, the abyss also looks into you”

Nietzsche.

Com a barba por fazer, desdobro-me de minha toalha; ponho-me, depois, a vestir-me, para cobrir o meu nu interior. Vou à cozinha; tomo café. Bebo um copo d'água; dirijo-me, como dantes, até a porta de saída da casa: irei à faculdade. Desço sorrateiramente. Acompanho o cantar dos pássaros. Ao meus lados passam carros, pessoas (centenas de pessoas); todavia me conduzo absorto em mim mesmo, e é ai que a realidade me pesa. Aqui, pois, de um ser deslocado, passo a ser um observador paulatino, que palmilha cada passo estreito que o outro Ser compele em minha frente. Antes de pensar, viro um ser que é minuciosamente atento, preciso e dramático, quando analisa a face humana.

No destrinchar do meu caminho, encontro-me parado em um ponto de ônibus. Algumas faces me olham; poucas eu olho: minha curiosidade se reserva ao que é estranho para mim (estranhez essa que, muita vez, não é a mesma vista pelo imenso número de pessoas com quem eu co-vivo).

Antes que possa se quer olhar - como quem procura meu ônibus - um objeto é lançado, caindo no centro do asfalto. Ausculto-o. É um garrafa de plástico. Olho para o local de onde ela veio; saiu, pois, de um carro que passava em alta velocidade. A face da pessoa que a lançou estava sorridente, pois, como veremos à frente, essa mesma “persona” estava feliz, por ter conquistado um novo namorado.

O que me intrigou, nesse momento, não foi exatamente isso; me intriga, pois, o comportamento das pessoas que estavam ao meu lado no ponto de ônibus. Elas simplesmente não esboçaram nada. Isso mesmo: nada. Ora, e porque deveriam? É mais do que comum, em uma cidade como Salvador, lançar garrafas pelo vidro do carro; aliás, é uma atitude louvável: “Estou empregando garis!”. Eu, que antes fui um ser humano muito submerso, imergi, nesse momento, para a grosseria com que nós, seres “humanos”, tratamos com humanidade não só os nossos “semelhantes”, mas nosso lar e abrigo: o planeta.