Maio sob o manto

    Vez por outra, vejo-me mergulhado num mar de doces e queridas relembranças.
    Isso ocorre com mais frequência quando a chuva bate forte na janela do meu gabinete, e o tempo, lá fora, escurece de vez.  E é o que está acontecendo agora.
    Estou sem ver o céu e o mar da Pituba, responsáveis, muitas vezes, pelos meus devaneios vespertinos, alguns impublicáveis. 
Não que eles sejam indecorosos, mas porque a mim, e só a mim, dizem respeito.
    Existem sonhos que acompanham a gente a vida toda e nunca devem ser revelados; alguns, nem depois da morte... 

    Muito bem. Nesta tarde de pé-d´água ininterrupto sobre Salvador, mais uma vez encontro-me mergulhado, não apenas num mar, mas em um oceano de boas e saudosas relembranças. 
    Diante dos pingos da chuva, que batem forte na minha janela, desfilam no meu silêncio crepuscular (os sinos já rezam a Ave-Maria!) momentos inesquecíveis

               da minha infância sertaneja; 
         dos meus tempos de seminário;
         do meu primeiro amor;
         dos anos do Serviço Militar obrigatório; 
         de minha passagem pelo Liceu do Ceará; 
         dos anos de Faculdade, no Ceará e na Bahia; 
         do emprego público que frequentei durante quarenta e tantos anos, até alcançar o que os romanos antigos chamavam, com a precisão costumeira, de Otium cum dignitate.

   Não podendo comentar nesta crônica - que não deve ser longa - todas as relembranças que a tarde molhada me traz, satisfaço-me em recordar pequenas coisas da minha infância que, a rigor, só vão interessar a uma reduzida, mas qualificada minoria.

    (Crônicas longas perdem a graça e sua principal característica, que é contar tudo em poucas linhas. Já disse mais de mil vezes que a crônica é o soneto do prosador que não sabe fazer versos.)

    Pois é. As relembranças do meu tempo de criança me chegam trazendo duas cidadezinhas do interior cearense: uma, Carius, onde só fiz nascer; e a outra, Iguatu, onde vivi a maior parte do meu tempo de menino, arisco e feliz.

    Do Iguatu, sinto saudades, por exemplo, da pracinha dos meus inocentes flertes;
         do fanhoso auto-falante, com suas "mensagens sonoras";
         da escola primária onde aprendi o bê-á-bá;
         do clube social onde dancei minha primeira quadrilha são-joanina;
         dos demorados banhos, nuzinho, no Rio Jaguaribe, o maior do Ceará.
 
     Sinto saudades do Vigário, de batina preta e chapéu de abas acolhedoras;
        do Juiz de Direito, com seu anel no dedo;
        do Delegado de Polícia, com sua peixeira de prata na cintura;
        do Prefeito, que recebia aplausos quando atravessava as ruas; 
        e do  médico, o único da cidade, que fazia "milagres", salvando vidas sem precisar de radiografias e laboratórios.

    Porque é maio, também sinto saudades das novenas marianas rezadas e cantadas na igreja matriz consagrada à mãe de Maria, avó de Jesus.
    Diria que Senhora Santana, a padroeira, do seu nicho iluminado, ficava envaidecida com o carinho da cidade pela sua imaculada filha. 
    Enquanto isso, num altar lateral, São Joaquim, cuidadoso, acompanhava cada flor que era depositada nos pés da filha abençoada.
 
    E com as novenas, vinham as quermesses, os leilões, as retretas, os namoros, precedidos de insistentes e eloquentes flertes, até na porta da igreja.
 
    As meninas, com um batomzinho discreto nos lábios, um pouco de ruge na face, unhas bem pintadas, davam vida ao alegre novenário.
Usavam saias rodadas e blusinhas fechadas, escondendo os seios, que só podiam ser visto na noite da lua de mel.
        
   Telefonei, há pouco, para uma beata minha amiga - e muito mais do vigário -, e lhe perguntei se  estava tudo pronto para a coroação da santa, no final de maio.
    E ela: "Não, não haverá coroação." Lamentei.
    Foi aí que me dei conta de que também guardara as mais vivas relembranças da coroação da Virgem que, como coroinha, presenciara lá no começo do século XX, na minha igreja matriz. 
    É a mais terna e significativa solenidade do mês mariano, que ora se inicia, sob o manto azulado de Maria. Já se ouve benditos nas igreijas... E se sente o perfume das rosas, a caminho dos altares.  
             
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 02/05/2010
Reeditado em 03/09/2013
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