Os Sacrifícios da verdadeira e sublime Amizade
Todo sábado pela manhã, Clarisse sempre ia para a casa de seu amigo Thomas. Ele era um poeta-filósofo que ninguém ainda conhecia seus talentos; morava com a mãe e duas irmãs. As poucas coisas e forças que ainda o prendiam a esse mundo eram: seu amor pelo pensar, pelo escrever, pelo poetizar, e o filosofar; sua paixão pela música e por seu irmão mais novo a quem tanto admirava, e agora sua mais nova e única amiga a quem amava como se fosse a sua própria alma a qual lhe permitia respirar, viver, existir.
Clarisse era muito mais jovem que Thomas, cheia de energia, de possibilidades, de coragem; tudo parecia ser possível quando Thomas estava ao lado dela. Ele se sentia finalmente compreendido, e amado por uma pessoa inteligente, carinhosa, insegura naturalmente em alguns quesitos, imatura sobre várias coisas, mas Thomas sabia que ela iria conseguir conquistar muitos de seus objetivos, e sentia orgulho e abençoado por tê-la ao seu lado.
A campainha da casa soou. Ele sabia que era Clarisse. Seu coração, antes tão lúgubre e inundado de mágoas, enchia-se de alegria, de euforia e contentamento. Ele não conseguia entender como alguém conseguia desencadear tantas sensações boas dentro de sua alma. Logo ele, sempre tão sarcástico com as pessoas, irônico com suas respostas e argumentações que faziam os outros se calarem, e se afastarem dele; logo ele, que já não acreditava mais em nada, um niilista alcoólatra e doente que desprezava a humanidade, o progresso, as instituições, as religiões, e até a si mesmo. Ele caminhou até o lado de fora, e abriu o portão:
_ Oi Clarisse. Tá cansada?_, perguntou-lhe, e ambos se abraçaram antes de qualquer resposta ser pronunciada. Ah! Como ele adorava aquele abraço: cheio de bálsamo para tantas inquietações, perguntas e angústias que a todo momento caminhavam dentro de sua mente.
_ Obrigado por ter vindo Clarisse.
_ Já disse milhares de vezes a você que não precisa me agradecer por nada seu bobo. Eu venho porque eu quero, e porque te adoro.
Aquela expressão “te adoro” há muito tempo deixara de acreditar. A felicidade para ele era apenas mais um subterfúgio que a humanidade utilizava para não encarar e admitir a futilidade e o vazio da vida em si, sempre inventando novos mecanismos e formas de idolatrias, como espécies de passatempos a fim de sempre se ocuparam no interstício da vida de cada pessoa, tornando “essencial” o que em si é tão ridículo e sem sentido algum.
_ Entre Clarisse. Temos sorte hoje. Estou sozinho. Minha mãe e minhas irmãs foram trabalhar e só voltam lá pelas cinco da tarde. Podemos ouvir música, escrever, interpretar poemas, dançar...
_ Você parece bem animado hoje. Que bom. Gosto de te vê assim!
Eles discutiram sobre vários assuntos, enquanto a música os acompanha como pano de fundo. Passou-se duas horas, quando o semblante de Thomas se transfigurou repentinamente.
_ O que foi Thomas, porque ficou triste e calado assim?
_ Você sabe o porquê.
_ O que você quer dizer com isso? Do que você ta falando?
Ele se aproximou do corpo dela, olhando fixamente em seus olhos. Pegou cuidadosamente sua mão direita, e a acariciava ternamente, enquanto lágrimas desciam de seus olhos.
_ O que foi? Tou ficando preocupada... Me diz o que você tem?
Ele a abraçou, as lágrimas beijavam a blusa de Clarisse. Ele se sentia a pessoa mais feliz quando conversava com ela, quando ambos não concordavam sobre certas coisas, quando o sorriso dela hibernava temporariamente todas as dores que bradavam nas masmorras de seu coração e de sua memória.
_ Sei que não tenho o direito de te exigir isso. Sei que é demais pra você Clarisse. A gente já conversou sobre isso, e conheço sua resposta. Contudo eu não consigo mais Clarisse, eu não agüento mais. Mas isso é irreversível. Não quero que ninguém saiba. Se eu for hospitalizado, eles vão descobrir tudo. Farão de tudo pra me ajudar, pra modificar o imodificável; curar o incurável; e vão tentar me encher com palavras de esperança, de fé, e toda aquela bobagem discursiva de sempre. Quero pelo menos ter orgulho em minha partida, em minha ida definitiva. Como já afirmou Nietzsche: “Morrer de uma maneira orgulhosa quando não é mais possível viver de uma maneira orgulhosa. A morte escolhida voluntariamente, a morte escolhida no momento oportuno, com clareza e alegria.” Eu amo demais a vida Clarisse, e por favor não me veja como um covarde. Mas meu próprio corpo aniquila meus órgãos por dentro, como se várias partes de mim odiassem o meu eu, a meu ser, a minha existência e a de tudo. Amo avidamente a vida minha amiga, mas ela já me vendeu e me atirou para as garras virulentas e sádicas da morte. Você sabe a minha opinião sobre tudo isso, embora eu saiba que não concordes. Mas é hoje Clarisse, e você é a única pessoa em quem confio para te falar sobre tudo, e te pedir isso.
Clarisse reclinou o rosto. Ela fitava o chão do quarto. Thomas continuava afagando a mão dela.
_ Não. Não me peça isso. Você pode viver muito ainda? Não desista...
_ Obrigado meu amor por tentar me animar, por sua gentileza, talvez eu até dissesse a mesma coisa estando em seu lugar. Mas eu te suplico Clarisse, por favor, faça isso por mim...
_Pára com isso Thomas. Como você pode me pedir isso! Como eu vou conviver sabendo que eu matei meu melhor amigo? Me diz, hein? Se você quer tanto isso, por que você não o faz por conta própria?
_ Clarisse, você não me matará. Eu já estou morto há tanto tempo. Você é que tem sido a ressurreição sagrada de meu corpo mortificado. Não quero que eles saibam. Não quero Clarisse que as pessoas depreciem o nome de minha família, tudo o que eles fizeram por mim por causa das opiniões néscias e obtusas da sociedade sobre o suicídio. Não quero que ninguém tente culpabilizar a minha família por nada. E se eles encontrarem o meu corpo seja enforcado, ou uma overdose de medicamentos, saberão que me matei, e tudo isso pode causar várias conseqüências ruins a alguns deles; pode causar desequilíbrio, desajustes e dores psicológicas, emocionais, e pode levar alguns a ações que jamais eu desejo que façam. Não quero mais causar problemas e mais caos do que já causei até hoje para eles Clarisse. Todavia, se todos pensarem que foi uma morte natural como se costuma dizer, uma fatalidade, a dor deles será menor, e o tempo amenizará as cicatrizes de minha partida Clarisse. Tente ver por esse ângulo também. Não quero passar meus últimos meses no leito de um hospital, tomando mais medicações só pra prorrogar o meu inevitável. Quero morrer aqui em meu quarto, junto de meus livros, de meus CDs, em minha cama, ao lado da pessoa a quem mais eu prezo, estimo e adoro neste mundo vil: você Clarisse, segurando a tua mão, sentindo a presença sublime de teu ser, levando eternamente em minhas retinas a imagem de teu rosto tão lindo, meigo, forte, e apaziguante.
Clarisse levantou-se da cama, chorava, e repetia sem parar: “não, não, não, não...”
_ Me perdoa por te pedir isso Clarisse. Você nunca vai estar sozinha: sempre estarei dentro de tua mente; minhas palavras sempre serão tuas amigas, e aonde eu estiver você sempre estará em mim.
Thomas abriu a gaveta de seu armário, tirou duas ampolas e uma seringa. Depositou-as nas mãos ela, e disse:
_ Ninguém vai suspeitar do que realmente aconteceu. Eu já pensei em tudo: o exame pericial não constatará nem um assassinato e nem um suicídio, mas simplesmente um ataque cardíaco fatal. Se forem mais detalhados, apenas descobrirão essa maldita doença que escondo de todos, e irão concluir obviamente que ela foi à causa da parada cardíaca.
_ Chega Thomas. Não quero ouvir mais nada sobre isso. Cala a boca. Você vai viver muito ainda. Nós dois vamos nos divertir muito meu amigo.
_ Admiro tanto a tua persistência e coragem. Seja sempre assim Clarisse. Você é incrível. Mas temos que ser realistas e lúcidos meu amor. Eu vivi e fiz o que minha mente sentiu, desejou, planejou... O resto será apenas repetições, os atos em si serão apenas repetições. Mas repetições com mais dor física, tormentos, gritos, e tratamentos inúteis para provar o quê: que eu não sou um covarde, que eu não eu desisti, que se deve ir até fim. Bobagens. E tudo isso para agradar aos outros, para provar algumas coisas para os ouros. Eu sei o que não sou. Estou cansado, muito cansado Clarisse. Ninguém entende minhas razões porque ninguém sabe realmente o que ocorre dentro do meu corpo a cada momento. Eles podem até imaginar, mas imaginar é totalmente diferente de saber, de sentir no próprio corpo as mandíbulas da morte me dilacerando; e se luta todos os dias para cumprir a missão que você cria para si mesmo. Não digo que cumpri tudo totalmente. Não, estaria mentindo. Mas eu fiz o meu melhor, eu dei o meu melhor Clarisse, e estou muito exaurido de mim, da vida, e de sofrer. Outros conseguem, logo eu posso conseguir? No fim Clarisse, não há vencedores nessa vida. Eu te amo muito Clarisse. Eu sempre vou te amar minha linda e talentosa poetisa; minha amiga...
Ela o abraçou fortemente, e repetia “não faz isso comigo, eu não consigo...”
_ Você consegue tudo minha Clarisse.
Ele lhe explicou como deveria ser feito. Deitado na cama, ela aplicou primeiramente o sedativo.
_Obrigado meu amor. Sempre me senti liberto de tudo ao teu lado.
Clarisse chorava aos prantos. A música escorria por todas as arestas do quarto.
_ Adeus minha Clarisse. Sei que um dia você vai me perdoar e se perdoar. Te amo muito mais do que meros vocábulos possam exprimir. Seja muito feliz...
Fechou os olhos, e adormeceu. Clarisse acariciava os cabelos de seu grande amigo. Beijou suavemente seus rosto, e seus lábios; com as mãos ainda hesitantes, abriu a segunda ampola, seu coração partido e pulsando aceleradamente, aplicou a outra dose em seu braço esquerdo.
Ela pegou em sua mão, e beijava aquela mão que havia escrito tantas coisas impactantes, novas, e cheias de sinceridade, brilho, e emoções intensas.
_Descanse meu amigo, descanse. Nunca me esquecerei de tudo o quanto nós aprendemos. Adeus. Te adoro muito também...
Clarisse enxugou o rosto com as mãos, e olhando pela última vez para o corpo de seu amigo, partiu para sua casa, pensando no que tinha feito, pensando sobre tudo o que poderia acontecer em sua vida ainda tão incógnita.
Gilliard Alves