Arrependimento
                         O diário é, quase  sempre,                                          o companheiro  da nossa solidão.
                                             Josué Montello

     1Conversando, ela me perguntou pelo meu diário. E sem esperar a resposta, mostrou-me o seu. No primeiro instante, pouco me interessei por ele. Mas, para não ser indelicado, pus-me a folheá-lo, com um carinho mentiroso.
     
2. Aos pouco, fui descobrindo que minha meiga amiga não se limitara a anotar, apenas, os fatos e casos que lhe aconteciam no seu dia a dia. Fora mais além: contara um pouco da sua vida em pequenas e surpreendentes historinhas.
     
3. Algumas dessas histórias, cheias de saudades; outras, cheias de ironia; e outras - não sei por que  -, ela as deixou inacabadas! Teve lá suas razões.
     
4. Encontrei, também, páginas em branco. 
      Não estranhei. Na vida, há datas, há momentos que não devem ser re-lembrados. 
          Machado de Assis disse, com indiscutível perspicácia, que nem todos os dias "são tecidos de ouro".
     
5. Sobre seus amores, a maiori ela confirmava; negava, peremptória, outros. Amores sofridos; amores difíceis; amores lindos...
     
6. Também anotou seus ódios; suas rejeições; suas malquerenças; suas decepções. Usou a reticência - esses eloquentes três (...) pontinhos -,  para ocultar ressentimentos e esconder nomes... Parabenizei-a.
       
7. Terminei de ler o diário de minha amiga visivelmente arrependido. Arrependido, porque esquecera de escrever o meu.
       Deixara de botar num caderninho, ou em uma dessas agendas que a gente ganha todo final de ano, o que fui; o que fiz e o que deixei de fazer; meus amores; meus sonhos; minhas vitórias; meus fracassos e frustrações, em mais de meio século de vida.
       
8. Ficaria para  meus filhos e para  meus netos o que o saudoso Josué Montello chamou de "o registro sincero da verdade de cada dia"; o registro da minha verdade.
     
9. Encontrando-me, agora, na trilha estreita a caminho do meu ocaso definitivo, resta-me rabiscar,  e em segredo, minhas reminiscências.  Mas não direi tudo.
     
10. O peso  dos anos me não permitirá contar com precisão o que aconteceu comigo; com ela; entre ela e eu; naquela hora... naquele dia... naquele lugar. 
     
11.  O que contar, agora, serão, apenas,  vagas lembranças de quem esqueceu de escrever o seu diário, no tempo certo, e que, por isso, como disse, confessa-se arrependido...
  

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 22/08/2006
Reeditado em 21/09/2019
Código do texto: T222801
Classificação de conteúdo: seguro