As evidências

AS EVIDÊNCIAS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 28.04.2010)

Houve época - uma época romântica, com um certo charme na desonestidade, uma certa ingenuidade no Mal, uma certa aura de justiça social no bandido que roubava do rico para dar ao pobre, um certo código de ética entre os contraventores que propugnava pela vitória tanto quanto reconhecia a derrota, quando fosse o caso -, pois houve essa época em que bastava a declaração de um homem decente e honesto, e os policiais eram no geral decentes e honestos acima de qualquer dúvida, para incriminar sem saída um sujeito pego no contrapé, como se diz dos goleiros que tomam uma bola que passa rente ao pé de apoio sem que possam fazer nada para impedir o vazamento da sua meta.

(Talvez jamais tenha havido uma época assim, mas gostamos de acreditar que sim, que naquele tempo as coisas eram de uma forma tão melhor, em tudo, que vocês nem imaginam.)

Essa terá sido, sem dúvida alguma, uma época sem ditadores, posto que as ditaduras inapelavelmente subvertem todas as regras da socialização, do convívio harmonioso entre as pessoas de bem - e quase todas o são, enfim. As ditaduras separam as pessoas em boas e más, sem graduações intermediárias, o que, de fato, facilita sobremaneira as decisões e os julgamentos (em geral sumários e inapeláveis), aquela história de que estará forçosamente contra mim aquele que não estiver comigo, de que você é ARENA ou MDB, de que ou amamos o Brasil ou temos que deixá-lo, de que alguém é democrata (em plena ditadura?) ou então corrupto e subversivo.

Um dia alguém apareceu com a novidade presenteada pela moderna tecnologia: um aparelho de fita cassete que cabia no bolso, tinha microfone embutido, funcionava com pilha e não fazia ruído enquanto gravava conversas sorrateiramente. Pronto: foi esse sujeito que jogou no mais absoluto descrédito a bastante palavra de um homem honesto e decente; o relato deste cidadão já não mais se fazia suficiente, urgia apresentar a prova incontestável, a irrefutável fitinha magnética.

A evolução das espécies chegou às filmagens com som e imagem perfeitos e aos meliantes que, flagrados ao porem dinheiro na cueca, na bolsa e na meia, ou em assalto ao caixa da loja de conveniências, vêm jurar, sem ruborizar (coisa caída em desuso há décadas), que é mentira, que tudo não passa de uma montagem de inimigos e desafetos para incriminá-los e desmoralizá-los - e ficamos todos por isso mesmo.

(Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 31 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 28/04/2010
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