O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

Nossa história é repleta de fatos desconhecidos pela maioria da população.

Muitos, com certeza já ouviram falar de Canudos e de Antonio Conselheiro, massacrados pelo exército por incomodarem as elites latifundiárias da época.

Mais recentemente devem se lembrar de Chico Mendes, assassinado pelos oligarcas da borracha.

Mas creio que bem poucos tenham conhecimento do beato José Lourenço e a comunidade agrícola que implantou nos arredores do Crato, e que ficou conhecida como "Caldeirão da Santa Cruz do Deserto"

Para entendermos melhor a história, vamos retroceder alguns anos antes do massacre.

José Lourenço veio a Juazeiro do norte, em 1890, na região do Cariri,Ceará, em busca de sua família que havia para ali se mudado em busca da proteção de Padre Cícero, logo que ficou conhecido o episódio do milagres das hóstias de sangue.

Ali chegando travou amizade com o Padre Cícero e em pouco tempo estava incorporado a "um grupo de penitentes que praticavam autoflagelação e rituais de purificação do espírito" ( in Caldeirão de Santa Cruz: Memórias de uma utopia comunista no Nordeste Brasileiro-Domingos Sávio de Almeida Cordeiro-VI congresso Português de Sociologia -2008)

Após alguns anos de convivência e mais outros de retiro espiritual, José Lourenço foi chamado por Padre Cícero, entre os anos de 1894 e 1895 que o ajudou a arrendar umas terras no sítio Baixa Dantas, no município de Crato. A principio eram apenas ele, sua família e alguns poucos romeiros.Aos poucos Padre Cícero foi lhe enviando vários trabalhadores rurais que chegavam a Juazeiro e não tinham outro ofício que não o de cuidar da terra.

Durante esse período o sítio Baixa Dantas floresceu em um sistema de cooperativa, todos que ali moravam eram donos da terra e repartiam o que era ali produzido.

Para entender o significado disso é preciso lembrar que a maioria dos que ali chegavam eram pessoas pobres, flagelados pela seca e pela fome.Não é de se estranhar, pois que sentissem-se numa espécie de paraíso, onde não faltava trabalho, espiritualidade e alimentos, além de remédios e o que mais necessitassem.

Em 1921, o Padre Cícero recebeu de um fazendeiro um boi de raça Zebu e, não tendo como cuidar do mesmo na cidade, enviou-o aos cuidados da comunidade de José Lourenço. Oras, como a Igreja católica ressentia-se do fato de o catolicismo popular obter mais êxito em agregar fiéis do que a igreja em si, os padres salesianos, aproveitando-se desse episódio, iniciaram uma campanha difamatória alegando que o boi, chamado mansinho, era objeto de cultos de adoração por parte dos integrantes da comunidade. Isso culminou com a ação de Floro Bartholomeu, um líder do município, em prender José Lourenço e sacrificar o tal boi. A carne do mesmo foi recusada pela maioria da população e segundo consta os soldados tiveram de comê-la obrigados.

José Lourenço após 14 dias sem se alimentar, foi liberado por influência de padre Cícero e voltou ao sítio, que havia tido a lavoura destruída por uma manada de bois que mandaram soltar por ali. Reagrupou seus seguidores e continuou os seus afazeres até recuperar o que havia perdido.

Em 1926, o proprietário do sítio, quer por necessidade quer pro pressão das elites e da igreja, teve de vender a sua propriedade e o novo dono não permitiu que ali ficassem os seguidores do beato José Lourenço.

Padre Cícero doou então ao beato uma porção de terra conhecida como caldeirão dos Jesuítas pois, segundo a lenda, dois jesuítas haviam ali sido mortos na época que o marquês de Pombas fez-lhes intensa perseguição.

O caldeirão, segundo o descreviam à época , era uma terra imprestável e seca, cercada de rojas e com solo pedregoso.Nada disso, no entanto abateu o espírito do beato e seus seguidores que transformaram, à custa de muito trabalho, aquele local em um oásis em meio ao deserto.

Claro que tudo isso não passaria despercebido às elites latifundiárias da época pois, quanto mais peregrinos se uniam ao beato, menos mão de obra barata sobrava para ser explorada em suas propriedades.Iniciou-se então um processo de difamação e calúnia, fomentados na época por boa parte da imprensa, visando criar na população um sentimento que permitisse às "autoridades" da época acabar com aquela comunidade.

Oras, eram tempos do Getulismo e a caça aos comunistas era algo generalizado.

Começaram a acusar a comunidade de praticar o comunismo , fazer orgias e o que mais lhes desse na cabeça.

Durante a seca de 1932, ao mesmo tempo que grande número de flagelados iam para os " currais do governo" que mais tarde ficaram conhecidos como campos de concentração do Ceará, e ali recebiam alimento de baixa qualidade, devido aos desvios dos alimentos que deveriam ali chegar, outro grande grupo uniu-se à comunidade do Caldeirão, onde havia fartura de trabalho e comida, distribuída igualmente entre todos. Criou-se pois um paradoxo entre as ações do Governo rico e a da comunidade de José Lourenço.

No caldeirão haviam inclusive várias engenhocas capazes de fazer rapadura, farinha de mandioca e outros subprodutos do que era ali produzido, além de paióis para o armazenamento do excedente.Havia entre eles marceneiros, ferreiros, artífices de couro, barro e cerâmica. A comunidade era auto-suficiente em quase tudo, inclusive faziam suas próprias roupas a partir do algodão que ali cultivavam.

Em 20 de julho de 1934, morre o Padre Cícero e , estranhamente para alguns, em seu testamento não deixou aquelas terras para José Lourenço. É preciso no entanto que se entenda que, Padre Cícero foi até mesmo investigado pela inquisição acusado de deturpara doutrina católica e ficou proibido de fazer suas pregações nas igrejas.Quando estava para morrer e tendo acumulado muitos bens ao longo de sua vida, a igreja foi procurá-lo para fazer uma "reaproximação" dele com o criador e portanto foi ele compelido a deixar todos os seus bens para a igreja, bens esses que incluíam a propriedade das terras onde se encontrava a comunidade do Caldeirão.

Os padres salesianos tornaram-se então proprietários do lugar. Em 1936 a comunidade é invadida por forças policiais sob alegação de que ali existiria um arsenal escondido e que aquilo seria um novo Canudos. Nada encontrando atearam fogo a tudo quanto viram e levaram vários integrantes presos para Fortaleza e outros foram trancafiados nos porões do DOPS. A "valorosa" polícia cearense cumpria assim o seu papel de preservar os interesses das elites.

José Lourenço logrou escapar da invasão e embrenhou-se pela Mata do cavalos,hoje conhecida como Sítio Cruzeiro onde foi encontrado mais tarde por parte de seus seguidores e reiniciou a sua comunidade.

Em maio de 1937 a comunidade foi invadida por tropas militares, por terra e por ar,sendo este o primeiro relato do uso de artilharia aérea em território nacional.

O número oficial de mortos no massacre foi de 400 almas mas há que diga que foi ao menos o dobro disso.

As causas do massacre foram, além da inveja reinante pelo sucesso da comunidade se reerguer, apesar da constante perseguição, o incômodo das elites latifundiárias que viam nela uma ameaça para a captação de mão de obra e a incapacidade do governo de lidar com a situação, o interesse da igreja em combater qualquer movimento que lhe fugisse das mãos.

Tudo isso culminou com a revolta de uma parte dos seguidores de José Lourenço, comandados por Severino Tavares,após haverem sido presos em Fortaleza quando da destruição do Caldeirão, que quiseram tomar a justiça nas próprias mãos entrando em confronto com as forças policiais em 1937. Essa foi a desculpa dada para as prisões e assassinatos dos que eram suspeitos de pertencer à comunidade antes do ataque final.

Após o massacre, José Lourenço e alguns de seus seguidores foram para Pernambuco onde criaram o sítio união, sem acréscimo de população, onde viveram nesse sistema e em paz até 1946, quando José Lourenço morreu de peste bubônica e os peregrinos se dispersaram.

SP, 27 de abril de 2010