UM 1º DE MAIO A QUE ASSISTI

Faz tempão enorme que fui “ver”, ao vivo, a festa de um 1º de Maio, na Praça do Ferreira. Era um sábado, o comércio formal de portas caídas. A Natureza fazia toró, vertendo lágrimas abundantes; grossos fios d’água, a cântaros. E a praça engalanada. Apesar de todo o temporal, ela era – toda, toda – sons e cantarolas.

Bandeiras vermelhas do Movimento dos Sem-Terra, subsidiadas por inúmeras do PC do B, do PT e do PSTU, balouçavam aos ares da chuva e as pessoas se retorciam, em requebro de dança. Cantores da terra e ‘clowns’, de caras pintadas, a coadjuvarem no brilhantismo da comemoração ao Dia dos Trabalhadores. Não o “Dia do Trabalho”, como erroneamente nos fazem entender as elites e a imprensa xereta e atrasada.

Só que a praça, embora com multidão expressiva, ainda reservava muito espaço para tantos conterrâneos insatisfeitos com o calvário daquele inglório momento nacional (dia 1º de maio de 1999), conjuntura aquela, sob o império do tucanato vendilhão, que batia todos os números de desemprego, já registrados no Brasil. Quase às vésperas de outro 1º de Maio, lembrei-me, hoje, daquele dia por conta de uns apontamentos que fiz.

Como chovia torrencialmente, cheguei à elucubração desta blasfêmia: “– Ah, também São Pedro aliou-se às safadagens do Poder.” No meu “também”, claro, eu refletia em cima da classe média, esta bandoleira que sempre pende para onde os ventos são-lhe favoráveis. Pois é: sempre aquela água morna, aquela ternura, com sua flagrante e maçante ingratidão.

A velha e ziguezagueante classe média jamais se me apresentou como flor que se cheire. Está sempre montada, de olhar teso no alto, lá para além dos seus tamancos. Doida por ‘status’, querendo ascensão, qualquer poleiro no Poder. Não há necessidade de ser-se sociólogo para que se saiba disso. Ensimesmada, supostamente superior, imaginando-se a sequer pertencer à categoria dos trabalhadores. E daí seu refrão desenxabido: “Tô nem aí, meu!” É a sua palavra de ordem, fundida na indiferença, quando, por ventura, requisitada a tornar-se agente social.

Estava bem à vista, naquela manhã de contestação, que a chuva também fazia papel de reacionário, hesitante, quando, até certo ponto, sabotava aquela manifestação pública, cheia dos melhores propósitos para protestar contra o arraso e o desgoverno do modelo neoliberal que se fincara nos meandros políticos e econômicos do País.

Cearense é maluco por inverno, e eu sou um deles. Modestamente, nascido acima do rés-do-chão do litoral. Mais ainda: filho de filho de agricultor, sitiante, credenciado a gostar de chuva e de torós. Contudo, naquele último 1º de Maio do Segundo Milênio, a Natureza que vá logo tapando as suas ouças.

Ela atrapalhou em muito, foi ranzinza. Aliás, foi pródiga demais, xixizando a cântaros e cachoeiras. E inibiu a presença graúda do povo num ato de protesto que poderia, somando-se a outros realizados de norte a sul, até, quem sabe, sacolejar os já abalados índices de popularidade do tucanato glutão, representado nos anais da República pelo rei das “medidas provisórias”, o rei reeleito FHC.

Na verdade, nada havia a comemorar, àquela época. Era tudo para se ir encetando um bom combate. Razões objetivas estavam ali: um rosário interminável de escândalos e desmandos das administrações, em seus três níveis: municipal, estadual e federal. Pessoalmente não fui assistir ao 1º de Maio, ‘in loco’, para espairecer nem me divertir com as canções, a verborragia dos oradores nem os trejeitos dos ‘clowns’.

Claro que estavam lindos os produtos regionais, as peças de artesanatos protegidas contra a chuva, alguns abnegados distribuindo papéis gratuitos. Sob forte toró, as barracas da feirinha, tudo ali muito “joiado”. Mas teria sido tudo muito mais joia se lá estivesse, nas clareiras da praça, o pessoal que ficou em casa ou se mandou à praia.

Você lia no ar a indiferença da classe média. Lá, vi gente das favelas, obreiros, as pessoas mais simples, até o lúmpen do proletariado. “Tô nem aí, meu!” – era mesmo que eu estivesse ouvindo da boca da indiferente classe média. E assim mesmo, em linguagem debochada.

Fui lá, à Praça do Ferreira, só para me indignar, ainda mais, dizer em cifras ‘per capita’ e em voz uníssona: basta de tantas bandalheiras e corrupções, basta de tanta entrega da soberania nacional, basta de se maquilar a Constituição Federal com as tintas do arbítrio, basta de governantes vendilhões, basta de subtraírem os direitos dos trabalhadores, basta de submissão ao capital exterior. Também, só com seis reais a mais no salário mínimo!...

Nunca mais voltei a outros atos do gênero. Sei que estou errado, agindo como a individualista classe média, que “não está nem aí”. E a coisa, depois de tantos anos, ter-se-ia modificado? Naquele 1º de Maio, lá distante, entre tantos homens e mulheres simples, vi apenas três parlamentares. Coincidência ou não, dos que cheiram a povo: o (então) deputado estadual Chico Lopes, o de vergonha na cara, hoje deputado federal, e os federais Inácio Arruda (atualmente, senador, PC do B) e José Pimentel (PT), até dias atrás ministro do Governo Lula. Três moicanos, em extinção; exceções que não correm no bafo do tucanato loteador do patrimônio nacional.

Fort., 27/04/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 27/04/2010
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