BELEZA ARGENTINA
Ao som de “La cumparsita”
Após viajar a Buenos Aires e transitar por suas ruas cosmopolitas se chega a algumas conclusões: os argentinos lêem mais do que os brasileiros, os cafés são confortáveis e razoavelmente limpos, as mulheres maduras são incomparáveis.
Minha namorada e eu viajamos para a terra de Borges e Cortázar depois de passarmos o ano inteiro economizando em lanches, restaurantes, filmes na locadora e no cinema, teatro, Coca-Cola, chocolates. Logo que desembarcamos, a desvalorização do peso argentino nos recepcionou. O dinheiro brasileiro valia muito mais. Chegamos a almoçar oito vezes em um dia e andávamos de táxi para qualquer lugar.
O primeiro impacto que tivemos: a glorificação do livro. Visitamos a Calle Florida – espécie de rua de comércio em moldes proporcionais à 25 de março em São Paulo – e verificamos, em meio ao turbilhão de transeuntes e consumidores, mais de quinze grandes livrarias equipadas com milhares de obras. Numa tarde, depois da visita ao zoológico, encontramos um camelódromo. Mais de cinquenta barracas vendendo... Sim. Cinquenta barracas vendendo livros!
A leitura tem importante papel na cultura argentina. Espantamo-nos com pessoas tomando suco ou comendo pizza e, acreditem, lendo.
Se o primeiro ponto positivo se constitui no incentivo geral da leitura, o segundo se consolida pelo conforto dos cafés. Em Buenos Aires, os bares que encontramos por aqui são substituídos por cafés. Cafés a que podemos levar nossas famílias, onde podemos escrever crônicas, resenhar livros, jogar xadrez, fazer o orçamento mensal, assistir a algum programa televisivo ou simplesmente ler. Faço votos de que nunca precise ir ao banheiro de um café argentino: os banheiros argentinos e os brasileiros estão em pé de igualdade!
Entramos em um café de San Telmo, bairro em que nos hospedáramos, para jantar e, assim que nos acomodamos, perturbei-me com duas senhoras que, pelos meus cálculos, sentavam sempre à sua mesa naquele horário. Liam jornais e revistas enquanto bebericavam chá. Depois, trocavam os periódicos e se deliciavam com o que a companheira acabara de ler. Por fim, sacavam seus livros.
Boa parcela dos freqüentadores dos cafés ocupava o tempo lendo, escrevendo, lendo novamente. Especialmente as senhoras para quem, provavelmente, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna escrevera “A mulher madura”, crônica interpretada pelo ator Paulo Autran.
Quando retornamos, entristeci-me. Dificilmente conseguiremos níveis de leitura próximos dos argentinos. Jamais disporemos de cafés confortáveis para leituras e conversas civilizadas. Nunca teremos o prazer de testemunhar novamente a beleza das mulheres maduras trajando-se digna, fabulosa, elegante, maravilhosa e belamente. As mulheres argentinas de meia-idade são incomparáveis.
Pensava nisso dias atrás quando, preparando-me para pegar o ônibus, vislumbrei uma professora experiente atravessar o percurso que a separava do veículo. Os curtos cabelos grisalhos transmitiam a força da jovialidade de seus passos coadunados aos trejeitos da roupa simples de intensa e profunda catarse estética: o colar repousando harmoniosamente sobre a camisa florida dentro da qual uma camiseta branca compunha o figurino completado pelas calças de tons suaves e sandálias que apenas as princesas de cenários oníricos usam no passeio majestoso da beleza, lançada aos cinco ventos dos mares da fantasia.
O êxtase do instante invadiu o ambiente. Os carros ultrapassavam os limites de velocidade urbana em silêncio inconcebível, o Sol escondia-se nas nuvens para suavizar o caminho assim como os ventos do verão ou dos prenúncios do outono envolviam-na em ritmos imperceptíveis.
Até os passarinhos pararam o trabalho rotineiro da despedida da tarde e das canções crepusculares para contemplar dos fios, dos galhos, dos telhados e dos céus, o momento mágico da música experimentada pela conjunção dos sentidos que durou exatamente os treze passos para entrar no transporte e, como numa cena de filme de Spielberg, o real desmanchar as alegorias simples, inefáveis e eternas das visões que, como sugeria Nietzsche, nos atravessam inexplicavelmente.
Quando ocupei meu lugar ao meio do ônibus, fixei-me ainda nos cabelos grisalhos levemente inclinados sobre um livro. Concluí que as mulheres argentinas de meia-idade são leitoras ávidas, charmosas e elegantes, mas que os anjos ouviram os murmúrios e me brindaram com o testemunho singular da transcendência feminina simbolizada na professora universitária, naturalmente bela como belos são os sentimentos indescritíveis, elegantemente maravilhosa assim como maravilhosas são as figuras sem desenhos, brasileiramente inigualável como todas as argentinas adorariam ser.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno TEM!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de abril de 2010.