TEM ALGUMA COISA MUITO ERRADA.
Tem alguma coisa muito errada. Disso não tenho dúvidas. É claro que há algo errado. A minha certeza disso provém da observação de alguns detalhes. Vejamos: a Constituição da República diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Então, por que é que tenho de pagar por ela? Se não pagar um bom plano de saúde, morro à míngua. Tá tudo errado. A mesma lei me diz que também tenho direito à educação. Quem se arriscaria por seus filhos numa escola pública? Se fizer isso, é bem possível que eles jamais cheguem à universidade. Segurança! Ah, também tenho o sagrado direito de ir vir. Se conseguir ir, pode ser que não volte. Essa é a realidade. Sair à noite! Nem pensar! Se sair, pode não voltar. Temos um assalto em cada esquina. E a polícia! Bem, polícia até que temos. Mas tem mais bandidos, pois até na polícia há um montão. Casa de praia! Casa de campo! Quem se atreve possuí-las! Ninguém se arrisca. Enquanto isso, na cidade, nossos muros vão ficando cada vez mais altos e cercados com arame farpado, cerca elétrica e adornados com câmeras de vídeo. Adianta alguma coisa? Coisa alguma. A bandidagem não está ligando para essa parafernália. Continuam a assaltar impunemente. E o trânsito à noite, nem me diga. É uma roleta russa sair ileso em alguns cruzamentos de nossa cidade. Se você tiver sorte passa. Se não, cuide-se. E quem se atreve a respeitar semáforo? Ninguém. Aqui, depois das dez da noite, no máximo, reduzimos ao mínimo a velocidade, só para garantir que não vamos bater em ninguém. Quando se consegue chegar ao destino, tem mais um problema: estacionar. É o fim da picada. Dificilmente, encontra-se vaga. E quando se encontra, já tem dono. Sim, nossas ruas e avenidas foram loteadas por "flanelinhas" ou guardadores de carro Só se estaciona com a sua permissão. Na verdade, eles são uns abusados. Para estacionar, você tem que negociar a "taxa" e pagá-la antecipada. Se não pagar, vai ter problemas quando voltar, se é que vai encontrar o carro. Para não dizer que só falei de coisa ruim, lembrei-me que está chegando o maldito dia da prestação de contas com o leão. Ah desgraçado! Já fiz as contas. Tenho que trabalhar quatro meses por ano só para satisfazer a fome do leão. O que me deixa mais revoltado é olhar para a minha garagem e ver que meu carro foi cem por cento financiado e, todo ano, dou de mão beijada ao governo o equivalente a um carro nacional de primeira linha. Isso é um absurdo. Sabe por que isso acontece? Porque pago faculdade e plano de saúde para filho maior de vinte e cinco anos. Pago colégio de sobrinhos dos quais não tenho a guarda. Assisto a familiares em dificuldades. E o pior de tudo é que ninguém lhe escapa. Pelo menos os assalariados. Pois a parte dele já vem descontada no contracheque. Nesse caso, sou ferrado duas vezes. A primeira, pelo tamanho do salário e a segunda, pelo tamanho da mordida do leão. O famigerado não respeita ninguém. Basta ganharmos um trocado e lá vem ele com a boca escancarada para nos engolir vivos. Por aqui é muito comum ouvir-se dizer que o danado come em nosso prato. Na minha casa é diferente: eu é que como as suas sobras. Vai para o inferno, desgraçado!