Um dia em Sampa, desenhos da vida.

Deixei a água quente escorrer pelo corpo, não me esfregava, expulsava a água da pele como se expulsasse um demônio, um ato de exorcismo, expulsava de mim aquela mulher por quem me deixara levar, e ao conhecê-la melhor me arrependi da hora e dos meus ímpetos.Contou-me de sua vida, seus infernos, seus homens, detalhes pequenos de relacionamentos menores ainda, quanto mais sordidos mais se esmerava como se esperando uma reação, todos casuais, sem sentido, me surpreendi a noite olhando-a dormir... um ressono alto, boca aberta revelando uma dentadura, que lhe cobria o palato detalhe que não vi nem senti.Na despedida fria ficou claro que havia sido um primeiro e derradeiro encontro, para ambos a surpresa fora desagradável. Lavei a cabeça, deixei a água correndo pelos ombros e pescoço para relaxar a tensão...cabeça a mil...me enxuguei esfregando com força todos os membros até a pele ficar vermelha e sensível.

Resvalo o olhar para a janela, diviso o fundo dos prédios da vizinhança. Um pedaço da Rua Augusta se emoldura na abertura entre os prédios do estacionamento a céu aberto ao fundo do apartamento, na sacada ao lado a única flor do vazo solitário da minha vizinha viúva, a arvore encobrindo os pássaros que abriga projeta uma sombra obliqua sobre as varandas . Volto a cozinha esqueci-me de lavar a louça do café...desanuvio a cabeça ao deixar minha louça limpa, se agiganta o prédio em construção, quadra e meia acima cobrindo o sol tomando quase por inteiro a paisagem da janela da área de serviço, nos tapumes que cobriam a obra “grafitaram” a frase ”Breve aqui, menos céu mais concreto” sorrio ao lembrar o dia que li, e foi o primeiro sorriso do dia. Não ouço o barulho dos operários nem presto atenção aos seus movimentos sei que se agitam como as maquinas da obra. Os passos do salto alto da vizinha do andar de cima batendo como castanholas com seu andar “sincopado” me irritam me fazem imaginar o que estará fazendo, sei que sairá pois se dirigem para a porta, não os ouço mais, saiu.Lembro a frase de Monica, “sexo a gente faz, amor a gente constrói”.

Meus sentidos estão voltados para dentro de mim e aqui dentro não há nada, além desta ansiedade e de um vazio que me entorpece. Confiro meu rosto no espelho, e me deparo com alguém mais velho que eu, olhos assustados e tristes, cabelos brancos, uma insinuação de calvície que me desespera. A mão invisível do tempo, traçou no meu rosto caminhos sinuosos, alguns sutis, outros mais profundos, rugas inacabadas, rascunhadas por alegrias, tristezas, vicissitudes enfim a vida... que lá vai iniciando mais um pequeno caminho no canto da boca.

Carlos Said

Dias de Sampa

Recanto das letras

Carlos Said
Enviado por Carlos Said em 26/04/2010
Reeditado em 10/09/2013
Código do texto: T2220234
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