RELATO DE UM DEFUNTO

Morri. Lembro-me perfeitamente da cena. A sensação foi bem esquisita, estava sentado no sofá, assistindo o futebol de domingo, e simplesmente empacotei. Não tive tempo nem de agonizar, já fui batendo as botas. Não sou médico, não sei diagnosticar a causa, mas foi algo fulminante. Ora, será que eu, na flor da idade, sofri uma parada cardíaca? Ou uma bala perdida adentrara no conforto e sagurança do meu lar, bem na direção do meu sofá? Acredito que não. Mas agora pouco importa, não pertenço mais a este mundo.

O meu velório foi bem pitoresco. Nunca consegui reunir tanta gente, e a maioria fazia questão de me ver dentro daquele caixão, magro, pálido e gelado. Fiquei constrangido, mas o que eu poderia fazer? Reclamar? Então, ao som do tradicional requiem, fui conduzido ao meu túmulo. Essa foi, sem sombra de dúvidas, a pior parte. Sempre fui claustrofóbico, e a sensação de passar anos e anos soterrado a sete palmos do chão, até que meu corpo entre no estado de putrefação a ponto de meus restos caberem dentro de uma caixinha, não é nada agradável. Logo eu, que sempre gozei de boa saúde. Triste fim.

Ademais, me vejo na obrigação de vangloriar meus amigos defuntos que optaram por serem cremados. Reduzir-se a pó é uma atitude de coragem inestimável. Confesso ser medroso demais para isso. Prefiro ficar na caixinha mesmo.

Mas esse papo de morrer me propiciará a descoberta de um dos maiores segredos da humanidade: Pra onde vamos depois de morrermos? Será que aquele papo que o bonzinho vai pro céu e o mau vai pro inferno é verdade? Confesso que, movido por uma súbita paranóia, tentei lembrar de todas as fases da minha vida, a fim de descobrir qual das duas opções passará a ser o meu lar por toda a eternidade. Lembro-me que, aos sete anos, torci o pé do meu coleguinha na aula de educação física. Aos doze, estourei, com uma bombinha, a caixa de correio do meu vizinho da direita. Aos dezenove, depois de umas boas doses de tequila, arruinei a tão esperada festa de 15 anos da minha prima (Não me peçam pra contar detalhes, foi uma experiencia bem traumática), ... Bem, é melhor eu parar por aqui, estou carimbando minha passagem para o andar de baixo.

Contudo, também fiz muitas boas ações enquanto vivo. Tenho certeza q fiz. Certeza absoluta. É, acho que essa parte da minha memória também bateu as botas.

Pelo jeito, o belzebu virá me buscar a qualquer momento. Admito que será interessante conhecê-lo, e desvendar se, realmente, trata-se daquela figura vermelha, com chifre, rabo e tridente, ou se surgirá na figura de uma estonteante loura, com fito de me tentar.

Ou então, devido a algum milagre (há ocasião mais apropriada pra acontecer?), o cará lá de cima concorde que eu mereça uma vaga no céu, e , assim, eu passe toda a eternidade no paraíso, trajando uma roupa branca e caminhando por aqueles lindos jardins.

Mas o certo é que, por enquanto, nenhuma divindade se interessou em me buscar. Será que nem mesmo o capeta deseja a minha presença? Ou será que deixei algo por fazer em vida, e terei que realizar depois de morto para, assim, cumprir minha missão, como em "Ghost" e "O sexto sentido"? Dificil. Só se a minha missão for tirar as dezenas de folhas de amendoeira que caem diariamente sobre meu túmulo.

Ultimamente, minha diversão tem sido beber vinho com a galera gótica à noite ou conversar com dona Sebastiana, minha vizinha do túmulo 78, gente boa. No mais, essa "vida" de morto tem sido bem enfadonha.

Pra onde vamos depois de morrer? Como é Deus? Como é o capeta? Inferno e paraíso existem? Sinceramente, não sei. Só posso afirmar que o ditado "partir dessa pra uma melhor" é uma das mentiras mais descabidas da humanidade.

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