Um livro chamado Criatividades
Era um livro meio caderno, um caderno meio livro, era feito de páginas que se alternavam entre páginas coloridas e brancas. Na direita os poemas nas páginas coloridas, na esquerda as páginas brancas em branco. Era feito de estímulos, provocava e intimidava. Como diria Adélia Prado, espicaçava.
O título: Criatividades. O objetivo era esse mesmo, cutucar a criatividade dos alunos. Não me recordo em que série eu estava quando nas aulas de literatura o conheci, mas me recordo bem do que senti ao ler “Poema em linha reta”. Foi como se eu derrapasse e enquanto lia nada mais em volta acontecia. Parei na folha ao lado, em branco, extasiada. Por essa época eu já estava seduzida pela poesia de Vinícius, lia suas crônicas e ouvia suas músicas. Os amigos curtiam Led Zeppelin, Bob Dylan e Janis Joplin enquanto eu ouvia... “Paris outono de 73, estou no nosso bar mais uma vez...” em que bar eu estava? Em que ano eu estava? Pelo 73 suponho que por volta dos 74, nos meus 16, 17 anos. Acho que foi quando comecei a escrever alguma coisa. À princípio transcrevia para o branco das páginas os poemas e as letras de Vinícius: “...São demais os perigos desta vida... principalmente quando uma lua chega de repente...”. A lua. Eu, que já olhava prá ela, passei a encará-la com olhares de espelho. Arriscava, então, meus versos à lápis tímida comigo mesma e, envergonhada com o que escrevia, apagava. Mas Criatividades exigia alguma coisa dos alunos e, para não deixar pistas, eu desenhava por cima das marcas do que não sei se era poesia. O ano letivo terminou com o livro todo marcado por rabiscos. Passei a escrever em papéis soltos que eu guardava, bem dobrados, numa caixa que eu mantinha escondida no armário. Não sei o que aconteceu com o livro, provavelmente se perdeu nas tantas mudanças de casa, mas a caixa, na primeira oportunidade, joguei fora com tudo dentro. E nessas tantas mudanças acabei me perdendo, e perdendo também o costume de encarar a lua, porém nunca deixei de encarar o espelho procurando por ela. Até o dia em que, anos depois, me vi com aquele livro velho, sem capa e com as páginas espessas. Era um livro de poemas de Fernando Pessoa, que minha irmã havia esquecido comigo numa das suas mudanças. De novo derrapei no poema em linha reta e parei na porta de uma tabacaria, extasiada imaginando o céu de Lisboa. Uma lua surgiu de repente quando Criatividades emergiu na lembrança me espicaçando. Voltei a escrever e, apesar dos perigos, nunca mais apaguei nem um traço.