DOCE (E ENLAMEADA) LEMBRANÇA

Corria o ano de 1996. O frango, vendido a R$ 0,99, é eleito 'herói nacional' por Fernando Henrique Cardoso, então presidente. Cid Moreira apresenta pela última vez o Jornal Nacional. Jaqueline e Sandra, no vôlei de praia, tornam-se as primeiras brasileiras a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, morre aos 36 anos (*). E eu passo no vestibular.

Era janeiro, e eu havia ido passar férias na praia de Guaratuba. Lá também estavam meus primos, minha mãe e minhas tias. Na época, para quem não sabe, não existia ainda laptop, Internet difundida e os celulares eram parcos e tinham quase o tamanho de microondas (que também não eram muito comuns por aí). Como o resultado saía às 14 horas e, provavelmente, os jornais de Curitiba só chegariam duas horas depois a Guaratuba, só havia uma solução: o bom e velho rádio.

Apostos, ligamos em uma rádio AM, pois não havia ainda as emissoras FM especializadas em notícias de hoje e começamos o calvário da espera. Então, veio a voz do locutor: “Acaba de chegar em nossas mão a lista de aprovados no vestibular da Universidade Federal do Paraná”. Eu havia prestado para Educação Física (longa história) e meu primo para Engenharia Civil. Só que rádio, já sabem, é nome a nome. Pensem num desespero.

Quando chegou à lista de Educação Física, silêncio absoluto. Até que... “Paulo Roberto Pacheco Filho” (sim, sou eu mesmo). E foi uma euforia. Saí correndo e me joguei num banhado que tinha em frente à casa (ugh!) – até hoje não sei como não peguei uma doença de pele. Cabelos cortados à la ninho de rato, ovos na cabeça e tinta na cara, comemoramos a tarde toda. Eu e meu primo, que também passou. Mas a comemoração não tinha sido completa. Faltava alguma coisa... sim, um tradicional banho de lama rodeado de outros aprovados.

Na semana posterior, sairia o resultado da PUC e falei para meu primo: “Vamos para Curitiba ver o resultado da PUC. Se passarmos, comemoramos duplamente. Se não passarmos, já entramos na Federal mesmo, que se dane, pulamos na lama do mesmo jeito”. E assim fizemos. Chegamos na PUC uma hora antes e fomos a um dos bares em frente (os famosos bares da PUC). Ficamos ali, tomando uma cervejinha, até que anunciaram que o resultado estava afixado. Correria geral. Fui até a lista, coloquei o dedo indicador sobre o papel e fui descendo até... “Paulo Roberto Pacheco Filho”.

Saí em disparada, gritando “Passei nas duas, passei nas duas...”, e me arremessei na lama. Comecei a sapatear, jogar barro pra cima, sujar quem estava em volta, uma festa. Logo meu primo chegou – também havia passado. Aos poucos, o estacionamento – onde armaram o banho de lama – ficou lotado de futuros universitários. Bom, já que o dia era meu mesmo, continuei os trabalhos que já haviam se iniciado no boteco... e dê-lhe cerveja.

Um caminhão de som, patrocinado por um cursinho, estacionou ao lado e a festança correu por horas a fio. Lá pelas tantas, eu já pra lá de Marrakech na cerveja, voltei à lama pra dar um retoque, pois começara a cair uma garoa e eu estava perdendo um pouco da fantasia. No mesmo instante que entrei de volta à piscina de lama, uma menina também entrou. Ela estava tal e qual a mim, uma autêntica caloura, imunda e sorridente de orelha a orelha. Tinha cabelos castanhos (eu acho) e um rosto muito bonito (eh... também só acho).

Foram alguns segundos ali. Um olhou para o outro e gritamos ao mesmo tempo, “Parabéns!”, seguido de um abraço muito espontâneo. E de repente, sem planejar nem falar mais nada, um beijo. Um longo e empolgado beijo, suculento e temperado com barro, tinta guache e água da chuva – que apertou neste exato momento. Então, num período de tempo que não sei precisar, paramos, abrimos os olhos, sorrimos, nos despedimos e seguimos para lados opostos; cada para seu destino.

(*) informações – à exceção da minha, é claro – retiradas da Revista Época.