Dona Júlia
Não teve a oportunidade de escolher seu marido, tampouco soube o que é estar apaixonada. Foi analfabeta toda a vida, mas trazia consigo uma sabedoria que vi em poucos. De um casamento arranjado ficou viúva muito cedo e como missão criou sozinha e como pôde seus filhos. Minha bisavó, Júlia Maria, partiu aos 84 anos e até hoje, dez anos após sua morte, lembro com detalhes e muita saudade os momentos em sua companhia. Amava todos os filhos, netos e bisnetos com um amor tão único, sólido, infinito. Demonstrou da forma que aprendeu - foi criada na roça; Como era feliz na sua simplicidade! Recordo que em sua sala havia na parede um quadro com uma ilustração do dilúvio, com umas letrinhas bem miúdas que eu não cansava de ler, tinha uma cadeira de balanço bem antiga mas não mais antiga que seu televisor preto e branco com um botão de girar pra poder sintonizar os canais. Guardava balas de hortelã num potinho de margarina na gaveta do armário da cozinha, aquelas balinhas com a embalagem verde e branca. O potinho sempre estava cheio e eu sempre o esvaziava... Só conseguiu ter uma geladeira quase no final de sua vida. Tinha um pote de barro, com água bem friinha, um vidro de perfume vazio em formato de cachorro – a tampa era a cabeça dele – e tinha uma esteira de palha na qual nos deitávamos após o almoço. Seu feijão com arroz eram os melhores do mundo mas o almoço ficava completo mesmo era com a guarina que ela comprava. Rezava o terço toda sexta-feira e não entendia o porquê de eu não rezar antes de dormir. Ela também tinha um candeeiro que ficava aceso durante as suas orações. Quando eu acordava pela manhã, ia direto à cozinha tomar seu o café que, pelo avançado da hora em que eu levantava, já estava totalmente frio. Chamava flor de “fulô” e Shopping Iguatemi de “Atemi”. Lembro que ela tinha um rádio que ficava sintonizado na Difusora. Era um daqueles de época que gente da minha idade só vê na série Ana Furacão. Só saía de casa com um lenço na cabeça. Tinha os cabelos bem lisos e grisalhos. Morria de medo de ir ao médico. No Natal as crianças da vizinhança iam pedir-lhe a bênção e eu sentia tanto ciúmes... Me perguntava coisas que eu não sabia explicar (na verdade eu bem que explicava mas ela é que não conseguia entender...) Gostava da sua maneira de não esconder as verdades. Só mentiu pra mim uma única vez: quando disse que ficaria boa... Não ficou. Uma semana depois partiu silenciosa, em sua casa, a noite. Hoje, guardo cada sorriso dado, lembro nitidamente da sua voz, da sua pele toda enrugadinha. Ficaram as lembranças da cadeira de balanço, da esteira, do feijão com arroz, da fulô e das balas... que saudades das balas de hortelã!