De volta ao começo.
Eles moravam distante um do outro. Duas horas de avião os separavam. Conversavam e brigavam ao mesmo tempo por emeio e telefone sempre. Talvez não houvesse no mundo pessoas que os conhecessem tanto como um conhecia o outro. Ele dizia: - Eliana, você é uma tormenta com um cérebro de calculadora. Isso dá a impressão de que é uma pessoa racional e ponderada, talvez até você acredite nisso, não é mesmo ? – Bem, algum dia já pensei ser a razão o meu guia, mas hoje sei que não é verdade, embora a maior parte das pessoas acreditem na minha aparência racional e ponderada. Chega a ser cômico! Então ela dizia: - João, você é um rebelde sem causa, que tenta a todo custo afirmar sua independência. Não quer ser funcionário público como seus pais, prefere ser autônomo a tolerar qualquer tipo de autoridade ainda que às vezes passe certas dificuldades financeiras. Não deseja se prender a ninguém e, por isso, criou um modelo inatingível de mulher (ela deveria ser uma puta na cama, amá-lo incondicionalmente, ser orgulhosa a ponto de ser manipulável, não fazer cobranças, trabalhar fora e cuidar do lar e dele). – É verdade, como atingir a perfeição é impossível, então sigo de braços em braços aproveitando o que cada uma possa me dar. João era um galinha incorrigível e queria colher todos frutos (e rosas) que a vida pudesse lhe oferecer. Por sorte, sua habilidade com escrita e sua disciplina para o trabalho quando lhe interessava, permitia que vivesse livremente ainda que de forma modesta. Já Eliana incorporava um personagem a cada dia ou a cada hora ou de acordo com o interlocutor. Se adaptava facilmente ao ambiente e em pouco tempo sabia que tipo de conduta deveria ter para não ser perturbada. Pela manhã, preguiçosa, só acordava depois de 1h de exercício, isso quando tinha pique para ir à academia. Uma vez desperta, saia correndo para o trabalho. Às vezes trabalhava muito, outras enrolava. Como sabia que dava conta do serviço em poucas horas, fazia o que queria enquanto a inspiração para o concluir a tarefa não vinha. Era tímida, mas ao mesmo tempo popular em seu setor. Todos lhe procuravam para saber sua opinião sobre o serviço e pedir conselhos sobre suas vidas. Ela incorporava a calculadora, fazia contas de mais e menos e expunha a situação de forma clara. Em geral, ela mesma não sabia qual decisão tomar, então deixava a critério de quem pediu o conselho, que quase sempre saia feliz com o resultado. À noite e aos finais de semana, estudava para concurso, desde que estivesse com vontade. Caso contrário, tratava de sair com seus amigos, ou de ficar consigo mesmo, ver um filme, ou ler uma revista ou livro que não exigisse qualquer esforço intelectual.
Os dois gostavam da companhia um do outro. Divertiam-se conversando e trocando farpas. Às vezes um ou outro se chateava com a situação ou se fechava em razão dos efeitos catárticos provocados pelas palavras proferidas. Outras vezes se atracavam, mais por conta da iniciativa dela do que dele (ele gostava de deixar isso claro, provavelmente porque não quisesse se enredar e não porque a iniciativa não fora dele). Um belo dia se descobriram. Resolveram ir a uma “balada” alternativa. Enquanto ele fazia a corte a uma moça, ela “dançava” junto de outros rapazes. Observaram seus comportamentos e ficaram impressionados com suas atitudes. Ela pelo jeito meigo dele, ele pela assertividade dela. Durante duas semanas trocaram confidências: ele que sempre dizia não querer ter filhos, falou de uma possível “Maria Rita”, sugeriu concursos que ela poderia prestar para ficar mais próxima a ele. Ela lhe confessou que intuía que um dia os dois se casariam. Fizeram planos de viagens e encontros.
Foi bom durante duas semanas. Ele logo começou a dar muitos palpites em sua vida, ela se sentiu pressionada e viu que não seria tão fácil incorporar o papel de mulher ideal. Ele se sentindo inseguro e também com medo de perder sua liberdade tratou de dizer que não havia dito e que ela havia interpretado de forma errada suas palavras. Enfim, de volta ao início.