Bahia dos santos
                    sem sossego





        Na minha mais recente passagem pelo Velho Mundo visitei sinagogas, igrejas e santuários.
        Na Itália, fui ao santuário seráfico de Assis; em Portugal, fui ao santuário de Fátima; e na França, pela primeira vez, fui ao santuário mariano de Lourdes.
        Estive, também, em algumas igrejas do Leste Europeu, depois que resolvi esticar meu périplo até às encantadoras cidade de Praga, Budapeste e Viena.
        Oh! A bela Praga de Franz Kafka! Quase cinquent´anos criminosamente escondida  regime comunista. A verdade, porém, deve ser dita: Praga teve seus templos católicos preservados por um regime reconhecidamente sem Deus.
        Vale a pena, por exemplo, passar algumas horas no interior da Catedral de São Vito e, à distância, admirar suas torres perseguindo as nuvens; bem como extasiar-se diante da Capela de São Venceslau, o padroeiro da República Checa, desde o século XI.
        Praga, uma cidade de igrejas irretocáveis!
        Em Lourdes e Fátima, seus santuários, visitados, diariamente, por milhares de devotos da Virgem, são tratados pelas autoridades locais com indisfarçável carinho.
        Nota-se, que, em torno desses dois santuários marianos, há uma discreta vigilância, pronta para sustar, e com o máximo rigor, a sempre possível investida de vândalos infiltrados entre os peregrinos de nacionalidades diversas.
        Mas também se constata o desvelo e o respeito com que os filhos da terra tratam o seu patrimônio religioso.
        Dando o bom exemplo, eles, de certa maneira, inibem a ação dos que, nos seus países de origem, costumam mutilar suas relíquias, entre elas, imagens valiosíssimas, incomuns obras de arte de artistas d´agora e d´outrora. 
        Quando, no ano passado, percorri as cidades históricas de Minas Gerais  - encontrando em cada uma delas uma, duas e até três igrejas - ouvi rumores de que é enorme a luta dos responsáveis pela preservação daqueles templos seculares. 
        Enfrentam os predadores; e promovem campanhas destinadas a convencer as autoridade da necessidade de incluir, no orçamento oficial, verbas indispensáveis à  conservação e manutenção dos velhos templos como, exemplificando, os de Ouro Preto.
        Na Bahia, as coisas não são tão diferentes.
        Quase todos os dias os jornais denunciam o descaso a que são relegadas as igrejas baianas, na sua maioria, também com mais de cem anos de vida.
        É o caso, só para dar um exemplo, da igreja do Santíssimo Sacramento e Santana, mais conhecida como a igreja de Santana, construída em 1744, no alto de uma ladeira que desemboca na Baixa dos Sapateiros.
        Essa igreja atravessa um momento crítico, com suas dependências caindo aos pedaços, obrigando o seu esforçado pároco a promover bingos e até festas dançantes para não ver uma das mais antigas igrejas da Bahia reduzida a um monturo histórico.
        Ora, com um esquema de segurança visivelmente  ineficiente, capenga, os altares e sacristias das igrejas baianos estão sendo visitados por ousados ladrões.
        Uns agem por conta própria; outros, segundo se diz à larga, são financiados por colecionadores de "santos antigos".
        Dias desses, na ilha de Itaparica, terra e xodó do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, os ladrões invadiram, na calada da noite, a igreja de São Lourenço; e levaram nada menos do que 50 imagens do século XVII.
       Me disseram, que nenhuma foi recuperada.
       Agora, estou lendo na gazeta, é o Convento de Santo Antônio de Cairu, "importante exemplar da arquitetura religiosa brasileira", construído, pelos franciscanos, por volta de 1654-61, que continua - eu disse continua - sendo ameaçado pelos larápios
        Cairu, um município-arquipélago, fica no baixo sul da Bahia. Na alta estação, recebe milhares de turistas brasileiros e estrangeiros por causa de sua proximidade com praias paradisíacas, este é o termo, como a praia de Boipeba e a praia de Morro de São Paulo.
        É o guardião do Convento de Cairu, meu amigo Frei Lucas Dolle,  que confessa: "Não consigo dormir direito. A cada barulho mais estranho, acordo com medo de levarem peças do acervo."
        Esse convento, de estilo barroco e belo frontispício, com seus altares em ouro, guarda 15 imagens dos séculos XV e XVII. Todas estão encarceradas(!?) numa sala que ainda não foi arrombada porque, penso eu, Francisco de Assis e Antônio de Pádua a protegem.
        A fragilidade desse aposento conventual pode ser avaliado depois que se sabe que ele é trancado "apenas por uma fechadura".
        Não estou vendendo segredo;  isso foi declarado pelo guardião, na reportagem que me ajudou a escrever esta página.
        Entre as imagens de Cairu, destaca-se a de Santa Divina Pastora "talhada em um bloco único de madeira de lei. Tem quase um metro de altura, e é revestida em ouro..."
        Considero um verdadeiro milagre ainda não terem os ladrões de santos dela se apropriado...
        Totalmente desprotegido, portanto, o acervo reunindo belíssimas peças religiosas pertencente ao Convento franciscano de Cairu.
        Essa coisa não devia acontecer por lá. Querem saber por quê? Então, saibam: no interior do Convento, ´"há 57 túmulos de famílias da aristocracia baiana." 
        Por que os descendentes dessas famílias, que se supõe apatacadas - zelando ao mesmo tempo pela tumba de seus antepassados - não garantem a integridade fisica e cultural do velho cenóbio seráfico do baixo sul baiano?
        Tem vez que fico pensando o que, amanhã, poderá acontecer com duas jóias do acervo religiosa da Bahia, e que são as seguintes: Em Porto Seguro, a igreja de Nossa Senhora da Penha (1503-1515) guarda uma imagem de São Francisco de Assis, do século XVI. Para os historiadores, é a primeira imagem sacra do Brasil.
        Em Salvador, entronizada em um altar lateral da Igreja de São Francisco, no Terreiro de Jesus, Pelourinho,  encontra-se - pouco protegida? - a imagem de São Pedro de Alcãntara. 
        Veja o dileto leitor o que os livros dizem sobre ela: 
        "Trata-se da obra máxima de Manuel Inácio da Costa, que a teria esculpido entre 1790 e 93, entalhando na madeira um São Pedro  com uma das expressões faciais de sofrimento mais realista de que se tem conhecimento na imaginária brasileira."
        Lá pelos idos de 1859, visitando Salvador, D. Pedro II apaixonou-se por ela.  E não escondeu o desejo de levá-la, como presente, para a Corte. Os franciscanos reagiram. A linda imagem continuou em Salvador. Não me canso de admirá-la.
        Daqui, faço um apelo aos ladrões de imagens: por favor, deixem nossos santos sossegados! Ao invés de roubá-los, danificá-los, profaná-los, curvem-se diante deles, e rezem um Pai-Nosso...


 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 21/04/2010
Reeditado em 28/10/2020
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