MARGARIDA NÃO É FLOR


Hoje acordei mais astuta. Mais loba. E, mais loba antecipava o ataque certeiro, depois de minada a resistência da presa, com premeditada paciência. Não sei o que me reservou a noite, não me lembrei de nenhum sonho. Não alcancei meu estado de ânimo, parecia uma armadilha pronta para a captura. Alguma coisa, sentia no ar, vai acontecer. Os cachorros latiram, alguém chamou, os pelos eriçaram, o coração resfolegou no tranco... Era o jardineiro. Seria ele? Seria por ele?

Caladão como sempre entrou e sumiu lá pela varanda dos fundos. Atenta, acompanhava o tilintar entre ferramentas e chaves, ruídos surdos de outros pequenos movimentos dispersos e o ronco, rouco, do cortador de grama. Nossa, é preciso relaxar!, pensei alto, sem deixar de observar que o cortador silenciara. Silêncio prolongado, tentava ouvir alguma coisa. Diante de total quietude, desconfiada, saí pisando manso e, vergonha! Estava ele lá, acariciando uma margarida.

A senhora sabia que margarida não é flor? Não? Repliquei. Margarida é uma infinidade de flores dentro de uma flor. É? Ele chegou mais perto, com a margarida na mão. Sabe esse miolo amarelo – me mostrava – cada pedacinho que se separa é uma flor. Essas branquinhas protegem as amarelinhas. Eu não sabia, retruquei inibida. Nesses dois meses, abril e maio, a senhora vai ter é flor por aqui!


Por toda a extensão do muro, as margaridas pareciam broches alfinetados na hera. Não dava para contar e eu não tinha reparado. E as glórias da manhã? Tem mais de três metros de flor! Mudei de casa, pensei de repente. Ele percebeu e consertou. As ipomeias! Ah! Essa flor serve para fazer florais para dependência de drogas, a senhora sabia? Olhei para o outro lado e vi um cone, coberto de flores e botões, púrpura, que desciam do alto até o chão. Eram mesmo uns três metros de flores e eu também não tinha notado.


Saí atrás de um café, amassada. A semana tinha sido arrasadora: chuvas, mortes, assassinatos, rombos descobertos, desvios de verba pública, corrupção, enfim, toneladas de dores e espanto, quilômetros de angústia e decepção, quilolitros de tristeza e medo. O que era humano cedeu, alquebrado. Era vez e hora da loba, com certeza. 

Mas, aos poucos, o instinto rude, amainava. Alguma coisa dentro uivava, solitariamente uivava, chamando, chamando... À espera de outros para ceder, enfim, às delicadezas que a vida, graciosamente, empresta.


Pois que loba resistiria, se tem em seu território, ali, inflorescências e glórias da manhã?

Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 20/04/2010
Reeditado em 20/04/2010
Código do texto: T2208932
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